As Brasas de São João

Encravada em um das costelas da grande espinhal da Serra do Caparaó, a meio caminho das vilas de Santa Clara e Varre-Sai fica a Fazenda Fortaleza, num vale estreito, a mais de 700 metros de altura, separada ao meio por uma estrada apertada que liga os dois distritos de municípios diferentes; estrada esta margeadas por lavouras de café que faziam a riqueza da região. A sede da fazenda era uma construção de 1894, no estilo característico das fazendas de café da época. Sem ser suntuosa era uma construção de certa imponência. Mandada construir pelo Coronel Domingos Campos, para o casamento de sua filha com um produtor rural, filho de portugueses, exímio caçador de pacas, mais conhecido por Zé Honório. Construída em dois pavimentos, chegava-se à sala de visitas, na verdade um grande salão, por oito lances de fortes degraus que terminavam em um alpendre, construídos com baldrames de braúna e corrimãos de aroeira. Do alpendre podia-se visualizar a maior parte dos arredores da sede, constituídos por galinheiros, tulhas para guardar mantimentos, um engenho de cana para produção de açúcar mascavo, um mangueirão de porcos e o moinho de fubá, além do curral e do abrigo para a tirada de leite. Dois pés frondosos de ‘biribás’ desafiavam os anos produzindo frutos saborosos. Ao fundo um Jequitibá majestoso, talvez o único representante de madeira nobre da matinha onde ainda podiam-se ouvir jacus e inhambus, ornamentava a fazenda dando um toque de beleza e requinte na paisagem bucólica.

Na parte inferior da casa guardava-se o carro de bois, todo material necessário para sua utilização nas lides da fazenda, a charrete que levava a família para a vila, e um quarto onde dormia um empregado dos mais antigos da fazenda. O casarão tinha seis quartos um salão, e uma enorme cozinha que na verdade era o local efetivo de reunião da família e até de alguns empregados mais chegados. Alguns anos mais tarde o filho do senhor Zé Honório mandou construir uma capela em homenagem a São Geraldo, nome de um de seus seis filhos.

Neste cenário, ao longo dos anos, foram realizadas várias festas juninas, que culminavam com o aniversário daquele que foi um dos grandes cafeicultores da região, agraciados com vários prêmios do IBC e do INCRA, como campeão de produtividade e melhor agricultor do ano, filho do senhor José Honório, de nome João Campos de Oliveira, mais conhecido nesta época por Joãozinho Honório. Estas festas acabaram fortalecendo-se como tradição que o Sr. Joãozinho Honório fez questão de preservar até quando aí morou. Posteriormente por questões de segurança a sede da fazenda lamentavelmente teve que ser derrubada perdendo-se com ela boa parte da memória.

Assim, como acontecia quase todo ano no mês de junho, a fazenda se enfeitava com bandeirolas coloridas, ladainhas, rezas e terços na capelinha de São Geraldo. Fazia-se movimento de cidade na sede da fazenda, muitas vezes, aumentando o trabalho da dona Anita, na recepção da vizinhança. Um café com broa de fubá estava sempre à disposição dos vizinhos mais chegados e dos muitos compadres e comadres. A branquinha tinha seu estoque reforçado, que era para alegrar os companheiros. Festa sem bebida não tinha graça. Uma novena em homenagem a São João começava nove dias antes da data comemorativa do dia santificado a São João. E neste dia era comemorado também o aniversário do seu João. Todo um preparativo havia que ser feito. Muita canjica com cravo e canela, leite de coco, amendoim, pipoca, broa de fubá, bolo de São João, linguiça de porco, quentão, tudo tinha que ficar ajeitado para não faltar no dia.

Neste ano viriam amigos do seu João, de Santa Clara, Varre-sai, Faria Lemos e arredores: Fazenda do Ouro, Fazenda da Jacutinga, Fazenda do Céu, Fazenda da Onça, enfim amigos da vizinhança. Um frequentador antigo da fazenda e amigo da família um cego de nome Antonio Cunha, músico tocador de banjo não faltaria; ele ficaria sentado no alpendre ouvindo a folia, mas tinha-se a certeza que o olhar do coração a tudo presenciava.

“Corria o mês de junho de 1946, pessoas mais livres, menos ansiosas pelo final da segunda guerra mundial e mais esperançosas com o governo do General Eurico Gaspar Dutra, vislumbravam dias melhores, encontrando-se com espírito mais festeiro. E foi com este espírito que os amigos de seu João resolveram fazer uma festa caipira com quadrilha, casamento jeca, e até um pau de sebo seria levantado, colocando-se na bandeirola com a imagem de São João, no cume do mastro, uma nota de vinte mil reis (ou vinte contos, que era como o pessoal ainda falava), para alegria da criançada. Um sanfoneiro da redondeza foi convidado, e a quadrilha ficaria a cargo de amigos vindos da vila de Santa Clara.

Chegara o grande dia, o aniversariante e dona Anita já no almoço, esperavam convidados. Seu Veloso foi o primeiro a chegar, montado numa mula de sete palmos, calçada nas quatro patas com tamancos para aprimorar a andadura do animal. Cavalgava elegantemente, de maneira imponente como um príncipe lusitano. Era padrinho do aniversariante, trazia como sempre uma garrafa de vinho “Casal dos Velhos”, dizendo: “está aqui um regalo pro amigo”. Logo em seguida, parentes e amigos do seu João foram chegando e enchendo o grande salão. A azáfama na cozinha era grande e o vozerio na sala dava um toque de festa na velha sede da fazenda. Enquanto isso, Zé Barba, o carpinteiro, um antigo empregado, soltava fogos no quintal, prenúncio da festança. A mesa foi posta: macarronada, frango a molho pardo, aipim frito, leitoa assada, frango frito, arroz de forno e uma linguiça de pernil que só dona Anita sabia fazer, regada com bom vinho do seu Salvatore de Varre-Sai. Começava a comilança, com vivas ao aniversariante. Seu João era todo, uma alegria só.

Terminado o repasto, passaram aos papos pela sala e pelo terreiro fazendo grupinhos, conversando animadamente sobre os assuntos mais diversos. As mulheres ficaram pela cozinha ou pelos quartos, e seu João foi tomar as últimas providências. Combinar com os empregados a construção da fogueira. A fogueira teria que ser acesa na tardinha de modo que chegando perto da meia noite, já estivesse só em brasas. Este detalhe era importante porque era neste momento que o pessoal fechava a festança com a passagem sobre as brasas com os pés descalços. Muitas pessoas já tinham feito promessa a São João e seus lugares já estavam garantidos em primeiro lugar.

Eu ouvia aquelas conversas sobre passar por cima das brasas com os pés descalços, e não podia compreender como as pessoas não se queimavam. Nos meus sete anos este assunto me dava arrepios. Mas minha mãe falava que era só questão de ter fé. Se tiver fé pode passar que não queima. Eu ficava imaginando e na expectativa.

Os empregados começaram então a construir a fogueira, com a madeira já devidamente serrada para que a pilha ficasse bem bonita; enquanto isto a ‘mulherada’ na cozinha ia fazendo canjica, torrando amendoim, fazendo chocolate para esquentar a noite que só não seria muito fria, em virtude do calor da fogueira, mais do que da fogueira, do calor humano, do congraçamento e da alegria geral. Uns dois sacos de batata-doce escolhidas já estavam no ponto e pinga para o quentão não iria faltar.

Ao cair da noite os cavalos vinham trazendo seus cavalheiros e charretes, famílias inteiras da vizinhança vinham também a pé. Dois caminhõezinhos chegaram apinhados de gente. Aproximava-se o horário em que seria rezado na igrejinha o último dia da novena. Todos seguiram para a capela; as mulheres em maior número que os homens, com seus terços e livrinhos de reza, tomaram conta da igrejinha. Como não cabiam todos no seu interior, a maior parte ficou de fora, ao relento, mas piedosamente acompanhavam as rezas e não devem ter sido poucos os que elevavam suas preces a Deus, pedindo graças para solução de seus problemas mais prementes. Terminou-se a novena com gritos de louvores a São João. Fogos pipocaram, bombinhas explodiram, busca-pés perigosamente em ziguezague riscavam luminosamente a noite, e todos se dirigiram para o terreiro em frente à sede, onde a pira já ardia. A criançada saltitava e corria alegremente pelos arredores da fazenda. Candeeiros e, lampadários feitos de bambu gigante e latas onde se depositava azeite de mamona, funcionavam como lanternas alumiando o terreiro. Uma sanfona já gemia nos baixos e, uma música de Lamartine Babo começou a ser cantada em uníssono:

“Chegou a hora da fogueira

É noite de São João

O Céu fica todo iluminado

Fica o céu todo estrelado

Pintadinho de balão

Pensando na cabocla a noite inteira

Também fica uma fogueira

Dentro do meu coração”.

Um céu de brigadeiro totalmente estrelado, com a lua explodindo róseo-amarelada mostrando “São Jorge como um ginete montado em seu corcel matando o dragão”, trazia não só uma energia mística, mas também, uma nuance de romance e alegria que envolvia toda a área dos folguedos. Era noite de São João.

“A fogueira em sua origem tinha sentido de purificação, de preservação de males corporais. Sua prática era tida como pagã. Com o advento do cristianismo a tradição continuou mais com um simbolismo cristão: Homenagem a São João o precursor da luz do mundo - CRISTO. Segundo José Aparecido Teixeira (folclore goiano) ,” elas vieram com os portugueses, e aqui ficaram para nos alegrar, principalmente nas noites frias de junho, sempre em homenagem a São João.”

A alegria reinava e a quadrilha ia começar com o pessoal que viera de Santa Clara. Primeiro fizeram o casamento do Jeca, colocando seu João o aniversariante como o noivo. Arranjaram-lhe uma noiva já que dona Anita não quisera participar da pândega, pois era anfitriã e necessitava estar atenta aos convidados, não deixando faltar os comes e bebes.

O pároco e o delegado, bem como as testemunhas, todos a postos em cima de um caminhãozinho. Fogos estouravam para dar início à cerimônia; nesta altura, já metade dos atores ou quase todos meio chumbados de tanto quentão, não se aguentavam de tanto rir. Apupos, ovações, gritos, palmas e gritinhos, quando então o delegado sacou do revólver e deu um tiro para cima chamando a atenção do povo, para que a cerimônia pudesse continuar. Terminada a jocosa patuscada, iniciou-se rapidamente a quadrilha, com os atores casamenteiros participando também da mesma. O marcador da quadrilha ajuntou o grupo e ao som da sanfona: ‘caminho das damas, anarriê, balancê, anavantur, olha a chuva, caminho da roça, olha a cobra no caminho, etc.’ E a quadrilha fluía animada, animando também o pessoal em volta da fogueira.

Já ia pelas onze quando a quadrilha acabou. Algumas crianças dormiam já emboladas pelos quartos e nos bancos do grande salão. A fogueira já quase toda queimada, anunciava o momento principal e final da festança. Era quase chegada a hora da passagem sobre as brasas. Para alguns o momento mais esperado. Enquanto aguardavam, vários grupos foram-se formando nos arredores clareados pela lua e a luz da fogueira. Alguns acocorados conversando e comendo batata-doce assada, outros conversando animadamente, alguns casais de namorados aproveitando o luar e o céu estrelado, conversavam animadamente encostados nas tábuas do curral ou próximos às charretes, sempre com os olhares vigilantes de seus pais. De mãos dadas, só os noivos compromissados e de casamento com data marcada podiam ficar. Mas sempre se criava condição para roubar um beijo e, beijo roubado era mais doce que mel, e mais quente que as brasas da fogueira, e depois, mais de ano para esquecê-lo.

Algumas pessoas já se retiravam da festa, não ficariam para participar da ‘passagem nas brasas’, principalmente aquelas que moravam mais longe e cujas conduções eram os seus cavalos. Por outro lado grande grupo se formava em volta da fogueira, aguardando a meia-noite para enfim passarem descalços sobre as brasas. As pessoas passavam e faziam um pedido. A festa de São João envolvia uma aura de romance, amorosa, assim a maioria dos pedidos era para casamento e namoro. Mas, pedia-se também ao Santo, solução para os mais diversos problemas: para pagar dívidas, para cura de uma doença ou solução de alguma questão mais premente. Para mim, que aguardava ansioso, ainda não sabia o que iria pedir, se tivesse coragem de passar, afinal tinha apenas sete anos, meus pensamentos estavam focados em outras coisas.

O primeiro a passar foi um rapaz de Santa Clara que andava de rabicho com uma rapariga do Divininho, mas o casamento não saía. Na certa era este o seu pedido. Em seguida passou um casal de mãos dadas, já estavam casados há tempos, mas não tinham filhos. Como passaram sem queimar os pés, quem sabe se São João não os ajudaria, dando uma mãozinha.

“Anos mais tarde pude verificar nas trovas de um autor de quem esqueci o nome, que a fogueira tinha uma relação com o amor:”

“A fogueira é o coração

Os dois queimam insaciáveis

Enquanto tiver lenha ela queima

Enquanto tiver amor ele vive

Enquanto a festa durar ela existe

Quando a festa acabar, ele triste”.

E as pessoas continuavam passando sobre a brasa, e a cada passada eu me animava, mas por enquanto estava ainda tremendo. Alguns queriam passar, mas não tinham a fé suficiente. Outros foram empurrados, mas davam dois passos e saltavam fora da fogueira. Desta feita passou uma moça da Fazenda da Onça, linda moça que perdera o noivo em um acidente – qual teria sido o seu pedido? Só ela poderia responder.

Tomei então posição na cabeceira da fogueira, enchi os pulmões de ar e gritando meu São João, atravessei os dois metros e meio de brasas flamejantes e eis que estupefato verifico que realmente não tinha queimado a sola dos pés. Seria um milagre mesmo?

(Ainda hoje, em muitas cidades, este ritual da passagem descalço sobre as brasas, nas fogueiras de São João, acontece anualmente - como exemplo a cidade de Bocaina SP)

Milagre ou não, fiz o meu pedido: ‘meu São João! Quando eu morrer que seja numa festa de São João, com fogueira, bandeirolas coloridas, canjica com cravo e canela, chocolate quente, pipoca doce e muita gente cantando: ‘cai, cai balão... cai,cai balão.. na noite de São João... cai, cai, aqui na minha mão’ e, saí saltitando, cantando com uma alegria e paz inimagináveis.

Jaoliver
Enviado por Jaoliver em 09/01/2010
Reeditado em 09/01/2010
Código do texto: T2020349
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