CUMEEIRA

CUMEEIRA

Apenas Mary. Simples pequena, de vestido longo e avental, num distante, remoto século XX, lá no começo. Trabalhando numa livraria na pomposa cidade de Paris.

Seu rosto oval, branco, quase transparente. Nenhuma heroína. Nada. Apenas a balconista de uma livraria, onde o herói proustiano, Marcel ia comprar seus livros. Livros para ele, e para sua amada Albertine. Por que Marcel se lembraria de Mary?

Ela sorria-lhe, amável, atrás dele, ajudando-o na escolha daqueles livros. Ele ainda esta lendo George Sand? Perguntou-se ela, notando nele o rosto enrubescido, vendo que logo ele ria em seus lábios finos e curtos, ficava olhando a capa do livro, depois que Mary já havia reparado naquele seu olhinho caído.

Ele nunca perguntou o nome dela. Nunca. Nem ao menos colocará isto em suas memórias, na Recherche.

Essa cena devia ser parte integrante do volume A prisioneira. Ele volta À Paris. É quando Mary o conhece. Apenas Mary o conhece. Sabe que ele é Marcel por causa do cheque em que ele assina.

No seu quartinho dos fundos de uma pensãozinha lúgubre nos arrabaldes de Paris, Mary esconde-se. Onde Paris é suja, onde Paris é cinza, quase apagada. Onde a luz é lamparina. Cadê as idéias, Monet, Zola, Moulin rouge? É só o mundinho de Mary. Como Nova Iguaçu no século XX e ainda no século XXI.

Mary veio dessas regiões rurais, em busca da Felicidade. O que esperava encontrar na brilhante e erudita Paris dos teatros, dos charmosos cafés e cabarés, de onde germinam os grandes escritores, pintores e artistas de teatro e de cinema...

Em sua cama, Mary, sentada, pode olhar pelo quadrado da minúscula janela e ver o céu estrelado de Paris num quente mês de agosto. Aqui no arrabalde é o mesmo céu que se contempla no fervente centro nervoso.

Mary usa cabelos curtos como usam agora as mulheres.

Amanhã Mr. Marcel vai aparecer lá? É semanalmente, duo semanalmente. George Sand. Sorri, é um sorriso estúpido. Não, não, é apenas um sorriso infantil, ingênuo. Levanta-se vai ver a chaleira no fogareiro. É preparar um chá. Malva. Perfuma o ambiente, serena os sonhos. Lá embaixo, no pátio, um tocador de realejo enche a noite morna parisiense de uma melancolia doce. O açúcar é caro. Mascavo.

Quando Mary deita olha, pela janelinha aberta, o céu coalhado de estrelas, suspirando, pensando naquele olhinho caído do Mr. Marcel; aquele risinho curto abaixo do bigodinho; o cabelinho repartido.

Mr. Marcel, tão elegante, empenhando sua bengala de castão. Um ar nobre, sensível, de certa humildade, gastando com apenas um agradecimento todo reconhecimento que poderia ter por ela.

Ele nunca saberá quem eu sou – convenceu-se triste, uma lagrima como que perdida derramando-se de seus olhos, e outras seguindo pouco a pouco, tremula, à penumbra do quarto. Uma vela triste e bruxuleante sobre um castiçal a cabeceira. A luz elétrica (descoberta recente) é desligada às nove horas ali.

Que belo, admirável mundo nascia aos seus olhos ainda jovem. Era tempo de regozijar-se . Vivia-se o século XX: telefone, luz elétrica... Mas por que está tristeza? Estas lagrimas? Sempre havia tristezas...

A vela foi-se extinguindo aos poucos na própria chama, assim como o sono caiu sobre a moça como um cobertor. A luz de uma estrela mais forte falava no céu de Paris. Em campos dos seus sonhos, Mary se via inclusa nas paginas. Reconhecida por Marcel. Aqueles dedos tão delicados deviam tocar uma linda sonata ao piano. Dentro da nebulosa de um sonho como em uma nuvem, por detrás de uma cortina diáfana ela podia vê-lo, porem não conseguia toca-lo. Parecia nem mesmo ousar; ofegante...

Despertada assim no meio da madrugada, tocou a realidade ouvindo um miado de gato pelos telhados, sentindo a escuridão envolta, um pio longínquo de coruja. Mary permaneceu em seu berço. Ah, não mais a solidão, a ausência daqueles familiares tão comuns. Os campos deviam estar vermelhos de framboesas. Sim, catando framboesas, amoras, com as duas irmãs, outrora assim. Agora Mary é só. Não dói tanto a solidão quando se tem uma rotina a cumprir. Os frutos agora são livros: Stendhal, Victor Hugo, Julio Verne, Emile Zola e... George Sand. A pequena Fadette. Madame de Sevigne deixou os olhos dele úmidos, e ele esfregou o nariz, disfarçando a melancolia, rindo depois, um riso de um lado só, abandonando o exemplar de Sevigne, as cartas. Mary não sabia o mistério. A tristeza do herói em lembrar de Madame de Sevigne.

Aquele dia, aquele dia, aquele dia... Ele deixou a livraria a agradecendo sem levar nada, e Mary fora até a porta, disfarçando, olhando o que?, fora apenas vê-lo desaparecer com medo que ele não voltasse. O que ele sempre agradecia? Ela guardava aquele “obrigado” dele bem no cerne do seus sentimentos, e então em seus sonhos delicados ela o ouvia novamente como um eco.

Sempre de manhã, depois de um café quase morno e um brioche um pouco dormido numa obscura confeitaria num dos becos do centro de Paris, Mary seguia para a livraria, seguindo pela calçada, admirada dos bazares que abriam suas portas, sentindo o aroma, o bafo que vinha do centro dessas lojas de vassouras, dessas quitandas, da floricultura que esperava lindas mademoiseles para vir comprá-las. Flores frescas. Narcisos amarelos como gemas de ovos, lindo de se perder o ar.

A manhã estava indecisa naquele dia, o céu brumado sobre nuvens cinza, mas querendo sair, furar um bloqueio em raios quase dourados. Mary reconheceu o dono da livraria, aquele homem alto, de chapéu, sobrecasaca, sempre de uma simpatia generosa, aguardando-a para auxiliá-lo a colocar certos livros sobre o toldo já levantado.

Nossa! Paris cheirava já àquela hora, um cheiro novo como um novo mundo nascendo de uma casca de ovo, todos os dias, ou há todas as horas, pelas manhãs, pelas tardes, aos crepúsculos. Os livros colhiam-se como frutos e era raro o crepúsculo que não se incendiasse com vozes em cantatas de poesias pelas confeitarias e até mesmo nos cabarés.

Mr. Marcel começava a desperta-la, ela, Mary. Aquele pensamento. Obsessivo? Mas se era tão sereno, quase como se não existisse uma eternidade para destruir, desgastar.

Varrendo a calçada, Mary lançou um olhar para o céu, percebendo que a bruma se desfazia que o sol irradiava seus raios, dourando os flamboianty, as acácias pelas calçadas, os narcisos nas bancas da floricultura, despertando as belas mademoiseles que acorriam com seus chapéus-coco. Os mancebos exibindo a ponta de um lenço de carmim na lapela, aproximando das meninotas. As risadinhas abafadas, os vestidos de chiffon, os azuis tafetás. Um mundo de cores; os perfumes evolando pelas calçadas, pelos que entravam na livraria, confundindo-se com os perfumes das rosas que passeavam pelas mãos em buquês.

E Mr. Marcel? Era ela, tendo um tempo para se encostar ao balcão, à mão segurando a cabeça pelo queixo, os olhos no vidro, percorrendo o passeio, então de repente, o coração deu aquele salto, era ele, sim ele, seus olhos foram esbugalhando pelas órbitas, perdendo o relaxamento, tornando-se tensa. Mr Marcel estava parado na vitrine, mas ela não podia contemplar todo seu rosto, porque ele como que olhava para baixo, para um grosso tomo. Não era George Sand, não era. Ela podia ver a fronte dele, reconhece-lo por aquele cabelinho partido cuja franjinha às vezes caia assim pelo meio da testa.

Mary Saiu de por detrás do balcão, veio seguindo pelo centro da loja, em passos cautelosos em seus mocassins tão humildes, e sem desgrudar os olhos quase desorbitados da vitrine, ela viu aparecer por trás dele, abraçando-o por sobre os ombros, uma linda mulher, morena, com um lindo vestido azul, mãos de dedos de lindos anéis, e um véu quase diáfano que desabava do lindo chapéu azul não deixava revelar todo seu rosto, mas pelo sorriso tão brilhante, e do modo como aconchegou seu rosto ao dele, Mary percebeu que ela era linda, e Ele virando o rosto para cima, o olhinho caído pareceu desviar apenas para aquela ao seu lado, ao qual ele tomou pela cintura, virou-se com ela pegando rápido o caminho, sem olhar para trás. Ali parada ao meio da loja, quase a porta, Mary pareceu sentir a gargalhada de felicidade dela. E como não podia ser feliz? Pareceu algo desmoronar de leve com um estrondo cadente a cada batida do seu próprio coração. De repente um silencio caiu como uma bomba, e nada se ouvia, desde o trinar dos pássaros sobre a copa das acácias até o alarido alegre das ruas enfeitiçadas de Paris ao barulho rouco dos bondes que cortavam as ruas.

Tudo quedou dentro de Mary como um livro que cai dentro do poço antes que se saiba o final.

Mas ele é feliz – gemeu ela muito tempo depois como se o efeito de uma anestesia tivesse passado, segurando um livro de George Sand, e ela que talvez nunca leia a Recherche para saber que Albertine nunca fará o Herói feliz.

31 de dezembro de 2009.

Rodney Aragão