UMA HISTÓRIA FELIZ
Permitiram-se o saudosismo. Havia muitas mudanças por isso recordar. Os filhos deixavam a casa porque seguiam suas vidas e os pais queriam recordá-los. Recordar como são; recordar como eram. Era preciso absorver deles a certeza de que sabiam de onde vinham e de quem deixavam de ser.
A mãe chorou no momento mesmo em que todos se sentaram no sofá. Olhou para as paredes, os retratos já encaixotados, os rostos guardados juntos aos móveis que também deixariam a casa.
Havia uma casa grande compatível com a quantidade de filhos que nasciam, expandida sempre que sabido de mais um nascimento. Agora as paredes eram grandes demais.
Os filhos saudavam as lembranças nos olhos da mãe, o pai a observá-los, analisá-los através dos óculos e a cabeça curvada surpreendendo uma mentira. O pai surpreendia que mentiam que iam embora, que um a um, de repente, crescera, encontrara um caminho que talvez não fosse o melhor dos caminhos. O pai enxugou os olhos.
Os filhos enxugaram os olhos após um xingo, uma repreensão do pai que soubera que aprontaram alguma coisa errada. Lagrimejaram através das memórias, através de uma infância desfeita rápida. Era muito rápido para a tristeza e solidão dos pais e muito rápida para a insegurança dos filhos. Restava guardar o momento da mudança.
Encaixotaram o resto dos móveis.
Devido à comoção, não raro era ver a mãe chorando ao embrulhar num jornal um dos bibelôs que ganhara em qualquer um daqueles natais que não saberia precisar porque não havia mais fotos sobre os móveis nem retratos na parede auxiliando a memória.
No quarto do filho mais novo estava a escrivaninha que era mais velha que a casa, mais velha que os pais. Surgira como surgem tantas outras coisas, como bibelôs que um retrato não vem dizer a origem. A escrivaninha não tinha origem.
Havia rabiscos com os nomes daqueles que iam aprendendo a escrever, a alfabetização descrita nos erros que eram ideogramas antigos. Antigos como o saudosismo.
Esqueceriam da escrivaninha, mas o saudosismo antigo num dia de despedida num final de ano impedia que o filho mais novo a deixasse, que os pais consentissem em deixá-la.
Imaginavam-na mais pesada. Cheia de poeira e história, deveria ter um peso maior. Carregaram sem dificuldades, desceram a escada e ninguém relutava na descida.
Talvez não tivessem calculado corretamente, mas os ângulos eram incompatíveis com a porta. Palpitavam que deveria ser virada de tal forma que as pernas passassem primeiro, mas a porta ou a escrivaninha não dispunha de tão boa vontade com a mudança.
Trazia tantos nomes e tantas outras coisas indecifráveis que a luta parecia perdida sem um término.
Deixassem de lado e se preocupassem com o restante, deixasse o móvel refletir que a mudança seria para melhor, que numa casa menor a sensação de vazio que os pais sentiriam seria amenizada, que o fato de não haver mais pessoas correndo, entrando e saindo em todos os horários, não seria percebido em um novo espaço.
Fizeram. A casa estava vazia e todos os olhos já haviam derramado as suas cotas de lembranças. Com exceção da escrivaninha, não restara nada além de mais um espaço vazio.
De repente adquiria peso. Talvez pelo cansaço, talvez pela persistência em ficar, não eram mais as dimensões que impediam a saída.
Não se perguntavam por que não conseguiam transportá-la porta afora, não conversavam mais. Olhavam incrédulos uns para os outros pensando no fim-de-ano, não sabiam se compartilhavam do mesmo pensamento, mas os pais eram recíprocos em compreender os filhos e estes entendiam a tristeza dos pais com a porta aberta esperando que cada um seguisse pelas ruas do bairro que não se encontravam nem seguiam uma mesma direção.
A mãe não passou os dedos pelas letras hieroglíficas na escrivaninha.
Não era afeito a violências, mas o pai esmurrou o móvel.
Do móvel não saiu poeira, não houve reação além do baque surdo e imutável, tão antigo quanto as letras. O pai era antigo, o peso da idade era grande para suportar a perda.
Todos perderam a vontade de partilhar da mudança. Os filhos não se atreviam a sair, não ousavam serem os primeiros. Olharam para o irmão mais velho, mas ele, sempre o primeiro a descobrir o mundo, o primeiro a desafiar o pai, quedou-se silente. Não tinham a quem recorrer.
Os filhos mais novos não recorreram a ninguém, não se confortaram no colo da mãe diante da fúria de um pai que sempre foi calmo, previsível até.
Mesmo que nada houvesse que lembrasse o antigo recanto para as desilusões, respectivamente cada um procurou seu quarto.
Os pais provaram o gosto da noite que viria, daquele silêncio que nenhum soco conseguiria fazer desaparecer.
Olharam-se cúmplices. O marido esperava repreensão da esposa por ter desfeito um momento que em breve seria mais uma lembrança e seria ruim por ter demonstrado o que sentia. Talvez tivesse esquecido que pais não sentem. Concluiu que não sentia quando disseram que era hora de partir; muito melhor era aceitar e esperar que se fossem. A esposa compreendia, tanto que não chorou.
Poderia esmurrar mais algumas vezes a escrivaninha, que, por ser objeto, tornara-se razão de raiva, de consolo através do som.
E tudo era silêncio, percebia enfim.
A mãe era silêncio. O marido perguntou-se desde quando a esposa era silêncio.
Ela disse “Tudo bem!”. Disse para que o marido soubesse que ela não era apenas silêncio.
Estava tudo bem; ele sabia por que ela dissera. Bom que ela estava ainda ali.
Logo a casa não estaria sob suas mãos, tampouco a esposa estaria ao alcance delas.
A mãe percebeu o caderno caído do móvel após a batida.
O caderno trazia a poeira das coisas esquecidas. A escrivaninha não tinha pó porque se recordaram dela, mas o caderno fora esquecido. Trazia o pó.
Diferente das letras dispostas na madeira da escrivaninha, as do caderno eram seguras ao dizer: “Se você não for eu, não abra!”.
Conhecia a letra dos filhos mas eles cresceram e adquiriam mãos mais ágeis, eram ansiosos pela rapidez, pelo fim a partir do início. Com o crescimento, desconhecia a origem dos dizeres.
Já que o momento exigia recordações, era propícia a leitura de algo antigo. Não trazia nome, portanto não seria indiscreto.
O início era infantil: “Meus pais não me entendem, pensam que eu não entendendo de nada! Sei apenas que eles são velhos e competem com a minha juventude. Eles vivem um instante que não quero. Nesse exato momento comem à mesa enquanto eu escrevo e escondo minha escrita para que não saibam que eu sei. Eu sei! Sei tanto que é impossível dizer a eles. Queria dizer a eles. O natal se foi e eu não tive a oportunidade de dizer. Guardei dinheiro junto a esse caderno e agora posso ir; tenho de ir! Eles não me sufocam, mas o ar que respiro é outro. Quero ir! Não peço ajuda pois os outros não sabem como me sinto. São mais jovens e ainda não entendem que o que tenho é pouco. Para eles ainda é muito, é suficiente. É tudo tão pouco!”
A mãe não quis prosseguir. Não mostrou ao marido pois sabia, depois de desferido o murro, que os temores eram aqueles escritos no caderno. Aqueles medos passaram a ser os seus.
Nas confidências antes do sono, deitado na cama esperando que mais um dia se findasse naquela noite anterior à partida, soube dos medos do marido. Pensava que não tinha sido bom pai, não havia provido o suficiente por isso partiam.
A mãe não proveu o suficiente. Se tivesse conseguido, não teria que ler reclamações que por mais adolescentes que fossem vinham das falhas deles.
Precisava chorar para não ter que desferir murros na escrivaninha e revelar verdades diferentes daquelas antes expostas na parede. Chorou e o marido viu seu choro.
Não eram mais lembranças. O misto de realização e de abandono do início do empacotamento se desfez.
A causa das lágrimas da esposa era a partida dos filhos, ele sabia.
Gritou para que os filhos viessem.
Obedientemente como havia sido durante toda a vida naquela casa, os filhos desceram as escadas. Os homens dirigiram-se a escrivaninha. Era necessário transportar o objeto para que o empecilho à partida fosse removido. Fazia-se tarde a partida.
Desnecessários discursos. Chegado o instante em que a despedida era inevitável, fizessem rápido.
O pai tomou a iniciativa: quebrou as pernas do móvel e cada filho — refletido seus motivos e rememorado os sentimentos de perda — tomou uma parte para si.
A força do objeto jazia apenas exteriormente, quebrado um elo, todo o resto sucumbia.
Providenciariam uma fogueira numa noite fria com aqueles pedaços de madeira velha, mas era tarde e não fazia frio.
Todos os pedaços foram deixados dentro da casa. Não havia mais nada escondido, mais nada a ser revelado.
A porta estava livre, todos os móveis prontos para a empresa de mudança. Restavam apenas os membros da casa que não seriam removidos, partiriam por uma vontade de mudar, pelo caminho que um dia os pais fizeram e agora os filhos repetiam.
— Não quero que vão embora sem que eu saiba de uma coisa!— disse a mãe.
Os filhos aguardavam o instante em que teriam de explicar a razão de partirem e não sabiam explicar, não foram antes questionados. Mas se tratava de família, na hora da partida queriam revelações e como mãe que era, a dose de drama — pensavam os filhos — resultariam em mais lágrimas.
— Apenas quero que me digam de quem é este diário!
Não se olharam.
Rápido, o pai tomou o caderno para si.
Afloraram as lembranças.
Os filhos reconheceram no pai o homem que era antes de usar de violência, a esposa viu no marido o homem que fugira dos medos de um lar desfeito antes de se casarem.
— Há muito tempo que nem me lembrava deste caderno! Escrevi muitas bobagens quando tinha a idade de vocês, ainda bem que são diferentes de mim. Me tornei um velho chorão, me desculpem!
Compartilharam abraços e seguiram seus caminhos. Já foram suficientemente felizes. Permanecerem na casa seria prolongar o que os retratos já diziam e o que a mudança faria renovar.
A mãe puxou o choro.