Relato de um soldado

* CONTO VENCEDOR DO 1º LUGAR DA CATEGORIA 03 DO VII CONCURSO REGIONAL DE CONTOS, CRÔNICAS E POESIAS OSCAR BERTHOLDO. *

– Eles estão precisando desesperadamente de seis homens! – Gritou o general, furioso. Estávamos em vinte homens, e sabíamos que seis de nós teriam a maior sorte do mundo, se, ao terminados os seis meses, pudessem voltar para casa. – Vamos, idiotas! – Lentamente, os seus capangas começaram a apontar o dedo pesadamente nos ombros dos escolhidos.

Eu fui um deles.

De repente, tudo começou a girar. Meu pensamento já não estava ali e por isso o general gritava comigo para que me encaminhasse logo para o camburão.

Será que sobreviveria? Será que teria a chance de ver novamente os meus filhos, a minha família? Droga, a única coisa que eu queria era poder mudar aquele maldito mundo onde éramos escolhidos como animais para lutar em uma guerra que parecia não ter fim. Será que ainda valia à pena lutar? Por que eu sou um deles? Por que nós fomos escolhidos? Por quê? Por quê? Eram muitas perguntas e absolutamente nenhuma resposta.

Logo fomos colocados em um lugar que cheirava a mofo. Não estávamos mais em seis homens, somente. Se estivesse claro, poderia muito bem contá-los e a soma resultaria em uns cinqüenta, no mínimo. Mas estava escuro. Muito escuro.

– Onde estou? O que está acontecendo? – Ouvi o eco terrível da minha própria voz no escuro. Os passos ao meu lado a cada minuto tornavam-se mais apressados. Uma gota de água suja caía tranquila e pausadamente em um lugar que eu não conseguia distinguir. O som do choro quase inaudível de uma criança fez-me estremecer. – Onde estou? – É claro que eu sabia a resposta. Mas como me atreveria a respondê-la? Como me atreveria a dizer que o mundo era injusto com mais ou menos cinquenta pessoas passando pelo mesmo que eu?

– Você não está em parte alguma, meu amigo. – Ouvi alguém explicar-me. Neste momento, houve um barulho enorme, seguido de uma confusão ensurdecedora. Nos demos conta de que já sabíamos onde estávamos.

– Vamos! Desçam logo que temos trabalho! Achei que já tivessem percebido! – Berrou o capitão Sérgio, fazendo sinal para que nos encaminhássemos para o acampamento improvisado. Através de sua voz, notei o quanto estava aturdido. O quanto, como todos nós, estava desesperado para que aquilo acabasse logo, embora na verdade todos soubessem que era apenas o começo.

Abrigamo-nos em um lugar que mais parecia uma barraca gigante. Completamente sem claridade, dava a impressão de ser um presídio. Tentávamos dividir o espaço, todas as noites, quando podíamos dormir ao menos cinco minutos; quando o inimigo não batia à “nossa porta”. Pela madrugada, acordávamos sempre às quatro horas, para preparar os nossos armamentos, e, às seis horas, saíamos para o campo. Posso afirmar que era uma rotina horrível.

Os três primeiros meses passaram rápido até demais. Mas quando começamos a perder amigos sentimos na pele

o que sempre ouvíamos de uma batalha. Muitos soldados competentes estavam enfraquecendo e achávamos que ninguém mais suportaria. Mas não era apenas para o nosso lado. O inimigo estava perdendo o poder que tinha durante tantos meses. Seus soldados também estavam exaustos, loucos para voltar para casa.

Então, em uma tarde ensolarada, recebemos a notícia de que o general oposto renunciara à guerra. Estava com muito medo de perdê-la e antes que isso acontecesse preferia acabar com tudo, mesmo que fosse chamado de incompetente por sua pátria. Naquele dia completavam exatamente seis meses. Ninguém parecia acreditar. Nem mesmo eu, quando entrei no camburão. Sim, iríamos no camburão, novamente. Mas isso não importava, afinal, estávamos voltando para casa. Estávamos indo para nunca mais voltar.

Já no veículo, fui convidado a comemorar. Respondendo que não, virei para o lado e deixei que as lágrimas escorressem livremente pelo meu rosto.

Nós havíamos vencido.

O carro parou na esquina do meu bairro exatamente às cinco horas da tarde de sábado. Havíamos viajado dois dias inteiros desde então.

Quando coloquei os pés no asfalto, não pude deixar de sorrir. Como é bom estar de volta! Aparentemente, nada havia mudado na rua onde morava. Olhei em volta e, depois de alguns passos, avistei ao longe a minha mulher e os meus dois filhos parados em frente à casa. Júlia sorria, e carregava nos braços o nosso filho mais novo. Rafael estava com oito meses agora. Ao seu lado, acenando, estava Jean, nosso primogênito de cinco anos de idade. Lágrimas rolaram de meus olhos ao vê-lo correr em minha direção. Dos dois meninos, Jean era o que mais se parecia com a mãe, mesmo que ambos fossem ainda muito pequenos para tal comparação. Ele era um garoto calmo, um pouco tímido, mas que adorava brincar com as outras crianças do bairro. Àquela hora da tarde, porém, não o encontrei jogando futebol com os seus amigos. Mesmo sem saber que eu viria naquele dia, Jean ficou à minha espera.

Quando ele se aproximou, abracei-lhe tão fortemente que pude ouvi-lo soluçar. Minha alegria era indescritível naquele momento. De mãos dadas, voltamos juntos para casa, onde estavam Júlia e Rafael. Beijei apaixonadamente a minha esposa, e sorrindo, peguei meu filho mais novo no colo.

– Meu Deus, como você cresceu! O que a sua mãe andou lhe dando? – Era realmente incrível o modo como Rafael havia crescido. Claro que eu já deveria esperar por isso, afinal, ficara longe de casa durante seis meses; mas mesmo assim me surpreendi com o tamanho do bebê, que parecia ter mais de um ano.

– Você não imagina o quanto sentimos a sua falta. – Murmurou Júlia quando já estávamos no quarto, prontos para dormir. – Foi mais difícil do que imaginei. – Seus olhos estavam marejados de lágrimas, embora ela tentasse demonstrar felicidade.

– Ei, eu sei, meu amor. Mas não vamos mais pensar nisso. Agora eu estou aqui, e não vou mais sair de perto de vocês. – Eu a abracei, e lhe prometi que seríamos novamente a família feliz que sempre fomos. Eu sabia que era verdade. E, de certo modo, ela também. Mesmo no escuro, pude ver Júlia sorrindo, e, fechando os olhos, agradeci por estar de volta. Em poucos minutos, adormeci, e, em meus sonhos, havia um mundo onde a guerra nunca existira.

Helen Bampi
Enviado por Helen Bampi em 14/12/2009
Código do texto: T1977923
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.