- O homem silencioso

Não foi ela quem me contou. Contou à minha amiga que depois me contou. Mas eu pude imaginar. Uma mão apoiada na vassoura gasta que ela usa para varrer a rua, a outra segurando o cigarro de palha e, entre uma baforada e outra, contando histórias para a vizinhança deslumbrada. Minha amiga não a conhecia ainda, a não ser pelos casos que contávamos sobre ela. Agora olhava embevecida a figura a sua frente, sem poder acreditar. E enquanto a fumaça volteava no ar a história ganhava contornos mágicos.
Ela nem havia nascido quando tudo aconteceu. Nem era projeto ou sonho. Nem mesmo chegou a conhecê-lo, pois a história se passou longe daqui. Só sabe o que sua mãe contou. E os tios e as tias. Mas era seu avô. Um homem bonito de porte elegante e rico. Casou-se muito novo, antes dos vinte. Os filhos vieram, um após outro. Uma escadinha. Quando tudo aconteceu, as idades deles variavam dos dezoito aos trinta. Alguns já estavam casados e tinham filhos. Moravam todos naquele imenso casarão ou muito perto. Em casas que ele havia dado. Mas o tempo todo estavam todos ali. E aí, vocês podem imaginar, disse ela para a sua platéia. Era uma bagunça só, o tempo todo. E ele era homem do silêncio. Raramente falava. Todo mundo estranhou quando ele disse que queria fazer uma grande festa no seu aniversário. Cinquenta anos. Queria a família toda presente, parentes e agregados, dissera ele. Não regateou dinheiro para as despesas. E a balbúrdia no casarão aumentou durante os preparativos para a festa.Teve até foguetes. E fotografo que tirou o retrato dele cercado pela família.  Bem, todos se reuniram no grande salão para cantar os parabéns. Em cima de uma arca enorme foram colocados os presentes. Cada um queria mostrar que o seu presente era o melhor. Afinal ele era um bom pai, apesar de calado.  Enquanto esperavam, ele estava no quarto se preparando. Nem a mulher deixara entrar. Depois de uma hora de espera quando todos já se mostravam cansados e famintos e as crianças já estavam todas desgrenhadas, pés no chão e rasgos nas roupas novas, ele entrou na sala, impecavelmente vestido com sua melhor roupa e... E aqui ela fez uma pausa:  uma mala na mão. Ninguém perguntou nada porque estavam todos com os pensamentos embaraçados e antes que o fizessem ele falou: Estou vendo que me trouxeram muitos presentes e este aqui é o meu presente para vocês. Vou colocá-lo junto aos outros e daqui a duas horas, trocaremos os presentes. Agora vamos todos comer e beber e nos divertir. E ele se divertiu como nunca. Brincou com os netos, conversou com os filhos, foi carinhoso com a mulher. Quando as duas horas se passaram, as crianças estendidas em sofás e camas alheias, as mulheres desmaquiadas e os homens bêbados, ele mandou que a música parasse e dispensou os violeiros. Assim que o silêncio se instalou a mulher disse que estava na hora de abrir os presentes para todos irem dormir. Foi então que ele foi até a arca, pegou a mala e saiu. Já no alpendre da casa se voltou e disse: minha missão está cumprida, agora é com vocês. Deixo tudo para vocês, tudo bem organizado, é só cuidar que não vai faltar. Vou para um mosteiro onde poderei viver em completo silêncio até morrer.
 
E foi minha amiga quem disse: penso que ficamos tão espantadas quanto a família dele. Ficamos em silêncio até que eu perguntei: e ai? E aí ela disse: ele deu as costas e montou em seu cavalo e partiu sem olhar para trás. Nunca mais ninguém da família conseguiu falar com ele embora soubéssemos onde ele estava. Morreu no dia em que completava cem anos. 29/10/09
(número 11 da série Pequenas histórias encantadas)