TORNEVILLE EM FRAGMENTOS [P1, VIII - Cutibranca e o Problema da Delinquência]
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VIII
Torneville não era uma cidade violenta. Dois homicídios por ano, nada mais. Para Cutibranca, entretanto, os delinquentes já haviam chegado ao milhões! “Já temos isso em Torneville!” - berrava ele em sua reprise diária - “Cadê as autoridades?!” - e babava na tela, numa daquelas horas do dia em que se chega em casa ao som do chuveiro e da panela de pressão. Certo dia os tornevillienses foram surpreendidos em suas poltronas com um texto inédito. Foi pouco depois do encontro bissexto com as urnas. Cutibranca se elegia prefeito! Depois de desbancar o candidato à reeleição, o prefeito analfabeto, usou seu horário na TV para afogar os cidadãos-de-bem que pagam imposto num rio de agradecimentos.
As mudanças vieram rápido: os produtores do programa não podiam mais usar aquela velha fita gasta, pois esta era carente de elogios ao poder municipal. Tentaram editá-la, mas o resultado foi visivelmente amador. Então cederam ao vento das mudanças e gravaram um novo texto com um sósia de Cutibranca – havia-os em Torneville às centenas! E assim ficou.
Homem de palavra, decretou pena de morte para assassinos, traficantes, estupradores e pedófilos. Criminalizou a prostituição e aumentou drasticamente as penas para assaltante e usuários de drogas. Engrossou o policiamento ao ponto de um militar para cada civil. Instalou modernas câmeras de vigilância em cada ângulo capaz de abrigar um trombadinha solo.
A segurança amparou a educação, e nossos filhos ficaram mais seguros e inteligentes com o toque de recolher e a redução da maioridade penal. Por fim, deu cabo à progressão da pena – “Agora, trinta anos são trinta anos! E o que a polícia constatou, a justiça deve assinar embaixo!”
A população vibrava! E como quiseram mostrar serviço naquela manhã! Os comerciantes viravam os olhinhos de torpor! “Agora ninguém segura Torneville!”
Os primeiros detentos vieram rápido. Um garoto da pré-escola foi comprar cigarros para o pai e o vendedor lhe surrupiou 30 centavos. Ele chorou e jogou a bolinha de gude na cabeça do vendedor. “Constatou-se déficit na região do cérebro responsável pela temperança... má criação... clara tendência criminosa” - dizia o psicólogo da TV. Internaram o moleque. Uma aposentada se recusou a mostrar os documentos ao comprar um vinho e terminou sua hora-extra de existência nas dependências da delegacia. As prostitutas foram presas e confinadas – cogitou-se o trabalho forçado – e as noites tornevillienses perderam o mel.
Se o preço da liberdade é a eterna vigilância, os vigilantes, por sua vez, não tinham preço. Era impossível subornar um guardinha de trânsito com tanta câmera! “Só parei aqui pra comprar remédio! Foi rapidinho!” - choravam uns. “Eu tava atrasado! Quem anda a 40 nessa rua?!” - choravam outros.
Os policiais foram instruídos a averiguar qualquer sinal de más intenções denunciado pelas câmeras. Não se podia se postar na calçada à espera de um amigo sem que um quepe lhe cobrasse as razões do encontro. “São realmente necessárias essas câmeras em todas as dependências da Igreja?” - reclamavam os padres.
Como vigiar é mais vital do que respirar, a prefeitura arrancou árvores centenárias para instalação de câmeras e o famoso Bosque de Torneville foi sacrificado para dar fim às sombras que abrigam o crime e à escuridão que sugere o ilícito. Os ambientalistas quiseram organizar um protesto, mas bastaram três cabeludos com mochilas se reunirem na praça pra brotar do chão a tropa de choque com seus camburões famintos.
As Faculdades Tornevillienses Integradas tinham perdido dois terços de sua clientela por uso de drogas e embriaguez ao volante! Foi-se até o cliente mais ilustre: o jovem Pirlo Cutibranca pegou cinco anos de cadeia – que, na álgebra de seu pai, eram cinco anos mesmo – quando encontraram um “treizoitão” no seu carro.
Não se via filas. Não porque a funcionária pública era monitorada e não podia mais fofocar ao telefone da repartição. As filas acabaram porque passou a existir uma outra, bem grossa, que monopolizava os corpos para o alívio das demais – a da delegacia, cheia de tornevillienses ansiosos por apresentar à carne os benefícios de tão exemplar política de segurança pública.
Quando acharam fotos suspeitas no computador de Cutibranca, o show terminou. Sua cabeça se despedia dos miolos e Torneville se despedia dos honrosos sacrifícios em nome do bem comum...
Paulo assistiu a tudo de camarote, agradecendo à sorte não haver câmeras em sua consciência ou gravadores capazes de capturar os insultos que saíam de sua boca e se desfaziam no ar enquanto dormia...
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[Extraído de "Torneville em Fragmentos", Leonardo Celeres]
http://ulcerafrags.blogspot.com/
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