Filha da ilusão.
Era uma menina que vivia atrás dos morros onde o sol não enxergava. Lá ela não tinha mais ninguém além do velho gato escaldado Pépe e o vento que lhes fazia companhia em dias frios. No calor, a brisa leve misturada à fumaça a envolvia e em suas primaveras outonadas raramente se viam flores.
Nunca fora apresentada às letras ou à música. Mas conseguia ouvir. Prestava atenção às melodias quando as ouvia e batia os pezinhos no chão fim de acompanhar as notas musicais.
Vivia como se em um mundo de encantamento, era como se a qualquer momento os terríveis obstáculos que a cercavam fossem desaparecer e fazer aparecer sua salvação.
Mãozinhas pequenas, corpo leve, pouca roupa e cabelo negro-opaco que escorria por entre suas costas miúdas. Costumava esquentar-se a noite junto a Pépe, o pequeno gato branco e preto. Não estava habituada ao colorido. Era como se as cores fossem puras demais para serem vistas muitas vezes.
E assim a menina ia vivendo, descobrindo-se aos poucos. Passava horas observando seus dedinhos minúsculos e ria ao mexê-los. Não sabia contar, mas já mostrava-se encantada pela quantidade.
Estendia os braços como se a qualquer momento alguém fosse lhe dar colo. Por vezes corria, outras simplesmente se aninhava em terra firme embaixo do mostro cinza que a cercava.
Seu prazer dava-se em revirar o desconhecido. Ah, aquilo era sua diversão. Uma vez por dia ela ia de encontro às surpresas que ele lhe reservava. Sempre tão quieta, observava quando o grande mostro de aço despejava seus desejos mais ocultos. E assim, não tinha mais fome e se tivesse sorte, nem sede.
Era fascinada pelas luzinhas que iam e vinham durante a noite, pelas gotículas do sereno e pelos bichinhos que por alí passeavam. Acompanhava-os com os olhos espertos e de longe escutavam-se suas gargalhadas. Além de tudo, também era apaixonada pelo natal. Todos os anos, saia de seu mundinho limitado e andava sem rumo no meio dos papais-noéis gigantes, murmurando algo parecido com as cantigas de natal entoadas a quatro ventos. Em pé, frente a frente as paredes de vidro, observava tantos outros como ela. Todos com braços, pernas, dedos...Alguns maiores, outros em miniatura, outros engraçados, uns mais sérios...
Sonhava sem nem ao menos saber sonhar. Brincava sem saber brincar. Ria sem ter motivo. Viajava, sem sair do lugar e tudo parecia tão perfeito quando ela se via dentre a multidão colorida que não cansava de se movimentar...
Pisca-pisca vermelho, fitas azuis e verdes e aquelas árvores gigantes! Levava Pépe no colo para que ele também se encantasse, afinal, estavam ou não no paraíso???
A menina não tinha nome. Alguns a tiravam de dentro dos destroços espalhafatosos do mostro de aço a fim de apresentar-lhe algo diferente. Uns não a notavam, outros porém não se preocupavam em notá-la, simplesmente passavam.
Autoridades discutiam sobre o seu futuro, sobre a possível educação e quem sabe até um lar. Deixaria então a menina de dormir com Pépe? E seu amigo de aço, que lhe trazia tantos presentes? E as luzinhas coloridas? E o miado fraco de Pépe acompanhado de seu balbuciar rouco?
Mas com isso a menina não precisou se preocupar, não a tiraram dali tão cedo e ela então continuou a viver dentro de seus encantamentos improváveis e insólidos. Viveu em meio a uma liberdade presa até o dia que seu castelo cinza se tornou um viaduto abandonado e em si mesma ela reconheceu muito mais do que simplesmente uma dezena de dedinhos frágeis. Os faróis que estavam ali a sua espera, não eram mais as simples luzinhas mágicas. Hoje eram muito mais, eram a garantia de um pedaço de pão.
A menina então percebeu que a magia havia sumido, o seu amigo de aço não lhe deixava mais os presentes de antes e no espelho o que restava pra ela era a imagem de apenas só mais uma menina de rua.