Alô Doutor
ALÔ DOUTOR.
Já passava das onze horas da noite. Na verdade já fazia algum tempo que eu havia escutado as badaladas do meu velho relógio, que conferia algum status à sala de estar do sobrado onde eu morava sozinho, desde a morte da minha esposa. Sempre que me perguntavam a razão da minha solidão, eu não sabia muito o que responder. As minhas justificativas não convenciam nem a mim mesmo. No início do ano de 1922, apesar de jovem, eu já era um médico respeitado.
- Dr. Carlos, dizia um velho vizinho, com quem eu me punha a conversar de quando em vez, já faz mais de um ano que Dona Laura faleceu, o senhor ainda é muito jovem para ficar retirado da vida social.
Eu sempre arrumava uma desculpa para a minha reclusão voluntária. Laura me fazia muita falta é verdade, mas essa justificativa me parecia um pouco inadequada. Eu, pessoalmente, achava que deveria mesmo sair um pouco e Laura, com certeza, concordaria comigo. Tentei ir ao Teatro algumas vezes, mas já não achava mais graça. Os livros de medicina que eu lia até altas horas da noite eram a minha única distração.
Quando o carrilhão anunciava onze da noite, era a hora que eu e ela parávamos de ler e íamos para cama. Depois, sem ela, eu repetia sempre o mesmo ritual. Era como se ela estivesse ali.
Naquela noite, um frio terrível me fez passar um pouco mais de tempo junto à lareira e, quando eu me preparava para ir para a cama, um telefonema interrompeu a minha caminhada. Numa noite gelada daquelas, altas horas da noite, quem poderia ser? Procurei lembrar de algum paciente que não estivesse muito bem de saúde e que seu estado poderia ter se agravado. Não me lembrei de ninguém nestas condições. E eu nunca dava o telefone da minha residência.
Meio assustado peguei o telefone:
-Alô.
-Doutor Carlos, me desculpe ligar tão tarde da noite.
-Realmente é muito tarde e espero que haja uma boa justificativa para me ligar a esta hora.
-Eu não podia esperar mais e fui orientado para que ligasse a esta hora.
- Orientado?
-Sim, Dr. Carlos. Segundo eu fiquei sabendo, é uma hora muito importante para o senhor.
-Mas o que o senhor sabe de mim? E quem lhe deu esta informação?
Seja lá quem fosse que estivesse do outro lado da linha, sabia de um dado muito particular da minha vida. Não me lembro de ter contado a ninguém que eu continuava com o mesmo hábito de ler até tarde da noite, da mesma forma como eu fazia com Laura.
A voz do outro lado despertou-me:
-No momento isto não tem muita importância.
-Mas o senhor agora vai querer decidir o que é e o que não é importante para mim?
-O senhor compreenderá no devido tempo. O que é preciso, nesse momento, é que o senhor cumpra com o seu dever de médico e me ajude a salvar uma pessoa.
Com certeza, o meu interlocutor me conhecia muito. Ele falou como quem soubesse que eu não me recusaria a este apelo.
-Está bem, ligue amanhã cedo para o meu consultório e eu verei o que posso fazer.
-Tem que ser agora, Doutor.
-Como agora? O senhor é médico? Perguntei com certa irritação.
-Não.
-Então como o senhor sabe que tem que ser agora?
-Quando chega a hora não dá para esperar Doutor.
-Tem alguém morrendo?
- Ainda não.
-Tem alguém querendo nascer? Perguntei mais irritado.
-Também não.
- Então porque o senhor tem pressa?
- Eu não tenho, respondeu a voz calma do outro lado.
- Então quem tem pressa nessa história toda? Uma pressa que me chama tarde da noite, não se sabe o porquê. Aliás, eu ainda nem sei quem é o senhor. Me responda ou eu desligo. Quem tem pressa?
- O senhor, ele respondeu com toda tranquilidade. A resposta me deixou tremendamente irritado e eu já estava disposto a pôr fim na conversa, quando a voz acrescentou:
- Eu estarei em sua casa dentro de uma hora. Em frente ao portão. Traga o seu instrumento de trabalho.
Eu bati imediatamente o telefone, certo de que aquilo era uma brincadeira de mau gosto e me decidi a esquecer a conversa. Fui para o quarto e comecei trocar de roupa para dormir. Dormir? Não eu não iria conseguir. Mas que bobagem, pensei comigo, aquilo não passou de uma brincadeira. Brincadeira? A verdade é que em pouco tempo eu já havia me vestido novamente e estava com a minha maleta de médico, pronto para sair.
Abri a porta e comecei a descer as escadas, mal acreditando que eu estava assustado com uma simples brincadeira.
-Não é brincadeira não, Doutor.
O meu coração disparou de tal forma que eu mal conseguia respirar. Ele parecia adivinhar o meu pensamento. Eu queria lhe falar umas boas, mas a sua fisionomia serena, de quem está senhor da situação me fez calar por algum tempo. Eu fiquei apenas olhando. Me parecia um homem distinto, vestido com um sobretudo preto e de chapéu, conforme mandava as boas maneiras da época. Tomei fôlego antes de reiniciar o nosso diálogo:
- Não posso atendê-lo aqui fora, vamos entrar.
- Não, obrigado, eu estou bem. Outras pessoas precisam de nós.
- E onde elas estão?
- É longe. Precisamos do seu carro.
Caminhamos até o meu Ford 1922 e segui as instruções do estranho companheiro de viagem.
- Temos que fazer uma pequena viagem . Em mais ou menos uma hora estaremos na porta de quem precisa dos seus préstimos.
- Não sei de qual doença se trata, estou levando pouca coisa.
- Não se preocupe, o senhor terá toda a assistência necessária.
Durante o resto da viagem ele não falou mais nada. Eu achei que também não deveria mais desenrolar a conversa, pois estava claro que não obteria nenhuma resposta lógica. Aquela figura distinta, de alguma forma, me despertava confiança.
Um pouco antes de chegarmos ao nosso destino, ele retomou a conversa. Outra vez ele me surpreendeu:
- Ela era muito bonita não era?
- De quem o senhor está falando agora?
- Laura. Ao ouvir seu nome, um sentimento estranho me envolveu. Eu sempre me lembrei dela com um sentimento muito forte. Mas daquela vez foi diferente. Nunca conseguirei explicar.
Depois de alguns segundos em silêncio, retomei a minha serenidade.
- O senhor a conheceu?
- Ela ainda tem aquele rosto bonito de quando eu a conheci.
- Quando o senhor a conheceu?
- Ela tinha apenas 3 anos. A irmã apenas 2. Com a morte dos pais elas se separaram.
Eu estava estarrecido. Como ele sabia de tudo? Apenas Laura, eu e os pais adotivos sabiam.
- Mas quem é o senhor? E quer fazer o favor de me dizer como sabe de tudo e o que está acontecendo?
- Chegamos ao nosso destino. Foi a resposta que ele me deu.
Eu olhei para fora do carro e vi algumas casas iluminadas, com muita gente entrando e saindo. Na verdade lembrava uma casa que eu havia conhecido na minha juventude, quando ainda era estudante.
- Mas isto é uma casa de prostituição...
- E o senhor é um médico.
- Ah! Então o senhor é o dono desta casa e deve estar com algum problema com uma das suas prostitutas.
-Não, não. A minha casa não é deste lugar.
-Então por que me trouxe aqui?
- Porque lá dentro tem alguém que eu amo muito e pode morrer.
- O senhor tem uma amante?
- De uma certa forma sim. E amo tanto quanto você ama Laura. Mas não faça mau juízo, ela é muito jovem para mim. Agora chega de perguntas. Vamos.
Saímos do carro e na porta da casa ele falou:
- Doutor...Muito obrigado.
Entramos na casa, muito parecida com aquela da minha juventude. Recordei rapidamente aquele tempo, mas fui despertado por uma jovem que me abordou:
-O senhor veio ver a Clara?
- Vim ver uma jovem que está doente .
O meu acompanhante se distanciou em direção ao bar. Pensei que ele preferisse beber alguma coisa a ter que ver a sua amante.
A moça que me recebeu, levou-me até o quarto de Clara.
- O senhor é muito bonito. Falou a jovem doente.
- A senhora também. Falei com uma emoção que eu não conseguia identificar.
- Senhora? Aqui, ninguém nunca me chama de senhora.
- Você até me lembra muito a minha esposa.
- E ela é bonita?
- Muito.
- Ela não se importa que o senhor venha a uma casa de prostituição.
- Acho que não. Me dê o seu braço. Vamos ver a pressão.
Fiquei ali longo tempo, examinando e conversando. Tive a impressão que mais conversamos.
- O senhor vai contar para ela que esteve aqui?
- É a coisa que eu mais gostaria na minha vida. Mas ela já morreu. Ela se chamava Laura.
- Dizem que eu também tenho uma irmã que se chama Laura.
- Como assim, "Dizem?"
- Eu praticamente não a conheci. Eu era pequenininha quando nossos pais morreram e eu nunca mais vi a Laura.
- Eu também nunca mais a minha Laura.
- Como o senhor chegou aqui?
- Um senhor estranho, distinto mas estranho, com sua capa e chapéu pretos.
- Capa e chapéu pretos? Distinto? O meu pai adotivo era assim. Ele estava assim no dia que morreu. Tenho saudade dele.
- Não se emocione mocinha. A sua doença me parece preocupante, mas vamos fazer tudo o que for possível. Você ficará boa e então quem sabe poderá procurar a sua irmã.
- O senhor acha que veio a tempo?
- Tenho a impressão que sim. Agora você precisa descansar muito e eu vou pedir para que comprem o medicamento necessário. Eu voltarei outras vezes.
Eu me retirei do quarto e me dirigi ao bar para solicitar que comprassem os remédios necessários. Um homem gordo me atendeu:
- Então Doutor, ela tem chance?
- Tenho certeza que sim. Peça para comprar estes remédios.
- Assim que amanhecer eu mando comprar. Ele respondeu com simpatia.
- Sabe onde está aquele senhor que veio comigo?
- Desculpe Doutor, mas o senhor chegou aqui sozinho.
Quase tive um desmaio. Não entendi muito o que havia acontecido. Despedi-me, peguei o meu automóvel e voltei para casa.