O SENADOR E O ENGRAXATE

No congresso nacional brasileiro uma sessão ordinária qualquer está no fim, pouco a pouco saem do plenário os excelentíssimos. É quinta-feira e o expediente semanal de um senador do interior do pais está cumprido , despede-se dos seus colegas de trabalho com as costumeiras cordialidades senhoriais; marca registrada dessas figuras tão gentís consigo mesmas, e parte para o estacionamento, onde seu motorista o espera no veículo oficial.

-leve-me ao shopping mais próximo, Sebastião! tenho que comprar um presentinho pra minha netinha que faz sete aninhos no fim de semana... depois seguiremos até o aeroporto.

-sim, senhor, estaremos lá em 10 minutinhos.

Ao chegar no estacionamento do shopping o senador pede ao motorista que o espere no carro, pois não demorará. Adentra o recinto e procura um loja de presentes. Enquanto escolhe entre um de vários últimos lançamentos da boneca barbie, recebe um telefonema de um dos seus acessores comunicando-lhe que o voo previsto irá atrasar em, no mínimo, duas horas.

O senador decide procurar uma lanchonete por ali pra fazer um lanche e esperar; senta-se à mesa e aguarda o atendente, que não demora muito em prestá-lo atenção e após pedir uma coca-cola light e paozinho francês amanteigado, apanha um jornal que havia sido deixado por ali e o folheia: política, economia, crônicas, gastronomia e até astrologia, mas o que chama a sua atenção mesmo é a coluna de esportes: uma leitura tão desinteressada que lhe sobrou oportunidade para observar como a morena que passava por ali, acompanhada, era muito elegante: genuina brasilidade. Chega em sua mesa a coca cola e o paozinho que substituem pronta e urgentemente as letras fadonhas do senador. Comer: um ato universalmente sagrado; matar a fome pensando em quase nada; saborear a necessidade do apetite.

Pela primeira vez o senador observa um jovem que está um pouquinho afastado dali: entre a lanchonete e corredor que dá acesso ao elevador: era o engraxate: postura serena e firme, sentado em seu esplendoroso ganha pão de cada dia. O garoto estava desocupado, portando um livro robusto e mergulhado em sua leitura - mais apetitosamente do que o lanche do senador - ignorava a tudo e a todos ao seu redor. O político termina de lanchar e leva suas atenções ao prestativo leitor; de maneira discreta observa-o atentamente.

- o que será que este jovem lê com tanto afinco?

- sentiu uma irresistível vontade de saber o tema de tal leitura e decidiu procurar o engraxate .

-boa tarde meu garoto! tudo bem?

-boa tarde, senhor, tudo bem sim!

o jovem observou o ilustríssimo senhor de terno e gravata impecáveis e o reconheceu; sem se lembrar de onde, como não vira necessidade em ajudá-lo, esperou pelo seu interlocutor...

- gostaria de limpar os sapatos, meu jovem!

- mas estão tão limpinhos, senhor!

-sim, mas gosto de vê-los brilhando um pouquinho mais...

-tudo bem, o senhor é quem manda, vamos ver o que posso fazer...

Panos e escovas vem e vão e o senador não contém a curiosidade em saber que leitura merecia tanto a atenção do garoto minutos antes.

-posso olhar o livro que você lia quando cheguei?

-sim! sim! fique a vontade, o senhor conhece pensamento de rousseau?

-não, não, nunca lí nada a respeito ...

-este é um dos seus trabalhos mais importantes e, embora tenha sido escrito no século dezoito, trata de uma problemática bem presente no mundo moderno...

- "discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens"... certamente é bem atual... mas me responde uma coisa meu jovem, como um livro tão antigo pode atrair a atenção de um garoto tão menino como você?

-ahh é verdade, não é muito comum hoje em dia mesmo; é que estou me preparando para o vestibular e esses temas me são muito importantes...

-ahh isso explica a sua empolgação com o tal de rosseau: o vestibular!

- e essa boneca, senhor?

- é para minha netinha que está fazendo sete aninhos.

-que bom. o seu sapato está pronto, senhor...

-sim, quanto é meu jovem ?

-nada , não usei material e quase não tive trabalho. da próxima vez o senhor paga, certo?!

o senador sorri, agradece e despede-se do jovem estudante desejando-lhe boa sorte no vestibular, mas antes de sair teve de perguntar:

-que curso sonha em fazer na faculdade garoto?

-ciência política, senhor...

-ahh sim , boa sorte meu jovem e até a próxima...

-até a próxima, senhor! obrigado.

o senador volta a lanchonete pra pagar o lanche e antes de ir ao o aeroporto tinha outro endereço certo a passar . Chegando no estacionamento apressou o motorista...

-Sebastião! direto à livraria mais próxima...

-sim, senador! mas não conheço nenhuma senador!

-certo, então vamos à universidade, certamente haverá alguém por lá que saberá onde encontrarei aquele livro... dê-me um pedaço de papel aí, Sebastião! preciso anotar isso antes que me esqueça ..." discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens"...

-No caminho até à universidade o senador liga para sua chefe de gabinete e a pede que verifique na biblioteca do senado se consta em seu acervo tal obra. E foram em busca do livro que o garoto engraxate, estudante pré-vestibulando e futuro cientista político tanto adorava em sua leitura.

wagnerianos.blogspot.com

Vagner Silva
Enviado por Vagner Silva em 01/06/2009
Reeditado em 24/08/2009
Código do texto: T1625900
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.