Gastura
O barulho do garfo raspando o prato produziu um arrepio que subiu da espinha para as orelhas. Abigail balançou a cabeça como que para esquecer aquela sensação. Era um almoço na casa da irmã Mariana e de vez em quando a criançada berrava e algum adulto berrava logo depois para pararem de brigar. A idade dos menores variava de um ano até oito e Abigail falou para seu irmão Jaime que seus netos estavam impossíveis aquele dia. Jaime por sua vez falou para a filha Eunice que os filhos dela estavam muito mal-educados. Para colaborar, Laurinha e Edgarzinho, os menores, inventaram de brincar de pique e tantavam se desvencilhar um do outro com gritos bem fininhos de "vem me pegaaaaaar" o que fez Abigail começar a ficar incomodada, incomodada, a mão no ouvido, a boca querendo xingar "puta que paril" sem poder. Depois do pique alto Edgarzinho e Laurinha trocaram para pique esconde e os gritos mudaram para "cadê você?", o que fez Abigail levantar e ir pegar um copo de água na cozinha, encontrando as moças, filhas de Mariana, a fazer o cozido para o almoço. Ana Lúcia cantarolava um axé enquanto cortava o aimpim e a faca teimava em não entrar na polpa branca, ficando fixa na casca grossa, o que fez Ana Lúcia balançar a faca para cima e para baixo como uma gangorra onde o ponto central era o dedo médio. Ao olhar aquilo Abigail sentiu novamente o arrepio subir-lhe da espinha para as orelhas então deu meia volta e voltou para a varanda onde o marido estava solto na cadeira com sua barriga imensa a aparecer em detalhes sob o tecido fino. Jaime, irmão de Abigail, sentado ao lado dele, conversava com os genros que tomavam cerveja, a espuma já fina nos copos tulipa com um brasão de fabricante de cerveja meio descascado bem no centro do amarelo cheio de bolhinhas. A palavra corrupção aparecia a cada dez segundos e todos xingavam todos, menos os corruptos da vizinhança, da revendedora de carros, do supermercado, do colégio, do condomínio - só os corruptos de Brasília serviam: os peixes grandes, senadores, deputados, presidente, secretários. Abigail não tolerou nem quinze minutos daquela falta de visão e foi para a sala, que estava vazia, então voltou para a cozinha onde fritavam a linguiça, e o barulho do óleo quente na frigideira produziu outro arrepio. Ei, você tem 66 anos! por que somente agora apareceram estas gasturas? Abigail fez-se esta pergunta franzindo o senho para a geladeira e não encontrou uma resposta convincente. Quem há de explicar nesta vida porque certas manias aparecem? elas simplesmente aparecem, como quando ela tinha oito anos e ficou com o cacoete de tocar nas coisas três vezes: se encostava no sofá tinha de tocar mais duas vezes, se lavava a mão tinha de religar a torneira mais duas vezes, se tocava sem querer o cotovelo na televisão tinha de encostar mais duas vezes. Mas Abigail achou que esta fase tinha passado, que tinha superado estas esquisitices de infância. Seus irmãos também tinham tido manias: Mariana tinha a mania de fungar toda hora e Jaime tinha de levantar a sombrancelha de cinco em cinco minutos senão deva uma comichão nele que não conseguia segurar.Eles tinham feito o teste, começaram os três irmãos a reparar nos cacoetes alheios e brigar uns com os outros por causa dele; no final todos gritavam e acusavam-se mutuamente, então fizeram um teste para provar que cada um não conseguia ficar dois minutos sem fazer a mania e todos não conseguiram. Jaime segurou as sombrancelhas com as mãos e as irmãs protestaram veementemente pois não valia ajuda. Abigail sentiu uma agonia doida se não encostasse nas coisas três vezes e Mariana parecia que ia morrer se não fungasse. Os três riram e emendaram outra brincadeira e meses depois as manias foram diminuindo de frequência e sumiram de todo. Agora não eram manias e sim gasturas que se instalaram na cabeça de Abigail: a poeira na canaleta da janela, o queijo que rangia no dente, a farinha de trigo na língua, a areia colada ao suor e ao óleo na praia, o ranger da dobradiça da porta, o giz arranhando devagar e zunindo no quadro negro, o serrote no vai-e-vem na madeira, cascas de ovos sendo quebradas devagar, a farinha no dedo, uma afta na boca, o barulho do freio no asfalto, a sujeira no meio-fio da calçada, as roupas apertadas sendo experimentadas no provador minúsculo da loja, as formigas na seção de doces do supermercado, o piso gasto e quebrado da igreja, as desculpas dadas para justificar todos os erros, os fios soltos dos aparelhos de vídeo, as máquinas automáticas de atendimento telefônico, as filas, a gordura da panela de frituras, o sabonete que fica no corpo, a mancha de tinta de caneta no bolso branco, a planta que morre sem que se saiba porquê - tudo começou a produzir aquele arrepio nas costas de Abigail e deixou-a louca, um bichinho calmo no meio de uma cidade pavorosamente cheia de carros velozes. Quando as amigas dela contavam histórias de amigos que tinham gasturas para ajudá-la a esquecer as suas, Abigail tomava para si as gasturas alheias, aumentando sua lista já grande. O marido Carlos José pensava em raspar as economias da poupança e fazer depilação definitiva na face tal o nível de estafa gerado pela gastura dela pela sensação da barba mal-feita ao roçar sua pele, o que a esposa achou ótimo, apesar de ao mesmo tempo o marido achar que estava ficando velho e enrugado para fazer este tipo de tratamento. Não é possível que você não vai fazer alguma coisa! - disse Jaime - Né Mariana? a gente está preocupado com você...essas manias que você tem, essa coisa esquisita de não poder ouvir nada, tudo irrita, qualquer besteirinha irrita. Eu hein...- Mariana concordou - É mesmo, você fica o dia inteiro reclamando, incomodada pelas coisas, que agonia!- Abigail ouvia e secretamente concordava mas não sabia o que fazer, até que sua amiga de longa data Ângela sugeriu-lhe um tratamento psiquiátrico. Tá louca! eu não! não vou fazer tratamento de doido - Abigail irritou-se - vou me curar sozinha. E repetiu a mesma frase dois, quatro, cinco meses depois. Viu que sozinha nada conseguiria. Com a ajuda de Sandrinha, amiga de Mariana, Abigail começou a fazer um tratamento psicológico com Dr. Altair, formado na Ufes, simpático, um pouco bravo. Dr. Altair e Abigail tiveram várias sessões de conversas, pesquisas da alma para saber por que ela tinha incorporado tantas aflições. Ela gostou da terapia e repetia sempre - por que diabos eu fui arranjar esse problema - e aos poucos acostumou-se à idéia que tinha de relaxar e esquecer. Dois anos de terapia e muito esforço produziram uma Abigail com praticamente nenhuma gastura. Ela conseguia ouvir um giz raspando o quadro sem ter muitas reações, ou um fiapo agarrado no dente não lhe levavam ao desespero, mas ela tinha muito receio de ter uma recaída, cercada que estava por possíveis manias e decidiu pedir ao marido para viverem na roça, no interior do Espírito Santo, bem longe da cidade, dos perigos urbanos, das manias sem sentido. Para sua total surpresa Carlos José não apenas concordou como deu sugestões para onde poderiam ir, qual casinha comprariam num pequeno sítio, que teria um pomar, e foram fazendo planos, planos e de fato mudaram-se para um sitiozinho na serra capixaba, cercado de verde, frescor, silêncio. Pouco tempo depois de Abigail chegar ao sítio ouviu Carlos José partir madeira para a cerca, o pio diferente de um pássaro e aos poucos sentiu um arrepio começar na base de sua espinha e subir devagar, devagar pelo lado e acabar na sua orelha.