O Meu Cão
Espreguiçava-me no relvado em frente à sala onde iria começar a aula. Um Sol morno de Primavera resolvera alegrar a tarde. Esperavam-me as pequenas drosophilas melanogaster, as vulgares moscas da fruta, que durante mais de um século têm sido usadas pelos geneticistas e pelos estudantes de ciências várias quando se põem a brincar às leis de Mendel. Fechei os olhos e comecei a ouvir muito ao longe uns sons que identifiquei como sendo ganidos de cachorrinhos. Fui ver. Era uma ninhada. Uma rafeira caquéctica, amarela, amamentava dez cachorros que lhe sugavam o leite para além das suas capacidades metabólicas. Estava na sala onde os funcionários guardavam as selas dos cavalos e outros instrumentos misturados com lixo e tralha de todos os tipos. Nunca percebi o propósito daqueles casebres de granito. Parecia um pequeno gueto dentro do vasto recinto da universidade, onde trabalhadores cozinhavam e se refugiavam como se tratasse dos seus próprios lares.
Reparei num dos cahorros por ser oposto da mãe: uma bola gorducha, branca e preta. Peguei nele e nesse instante tornei-me sua, tornando-o meu.
Mal podia esperar que a aula acabasse. Só pensava na terrível possibilidade de ele já estar dado uma vez que era o mais bonito de todos.
“Podes leva-lo” Disse-me o Diamantino, o tratador dos animais, filho do chefe das análises clínicas. Aquilo era tudo uma grande família. Toda a gente era parente de alguém. O moço, muito simpático, lá me informou que aquele cachorro era filho de um Pastor Alemão que por ali passara um dia a deixar a sua carga genética.
Seria um cão grande, não importava. Era exactamente aquele que eu queria. Levei-o para casa. Tinha aproximadamente um mês. Já comia.
Não me ocorria nenhum nome por isso comecei por chamar-lhe simplesmente Bebé.
Aos quatro meses, tinha ele o tamanho quase de um burro, ainda era o Bebé. Reparei que as pessoas estranhavam o nome. Não fazia, de facto sentido, pois ele iria ser um garanhão, pensava eu orgulhosa. Tinha de lhe encontrar um nome. Mas estava difícil.
Nessa noite mal dormi. Pensava, reflectia, vasculhava nas histórias armazenadas na memória e nada. Já a madrugada se preparava para despontar quando me recordei da história dos irmãos Fanata e Canicha. Dos factos nada restou na minha lembrança. Só sei que eram dois irmãos com nomes bizarros. Fanata soava-me muito mal. Restava Canicha e assim ficou. Depois de alguns dias a tentar habituar-nos ao novo nome deixei cair a primeira sílaba e para sempre ficou o NICHA.
O Nicha era um cão perfeito. Andava comigo para todo o lado. Assistia às aulas. Ia almoçar à cantina. Fazia uma vida de estudante comum. Era o cão mais famoso do Campus. A mascote do curso. Amigo de todos os alunos e professores.
Tinha apenas um pequeno defeito: deitava pêlo. Economizei para comprar um aspirador. Foi a compra mais útil que fiz na vida.
A educação do Nicha forçou-me a longas horas de meditação. Queria encontrar um equilíbrio entre a vida normal de cão e a vida conveniente para um cão em convívio estreito com seres humanos. Passava horas a tentar descortinar uma maneira harmoniosa de permitir que ele desfrutasse da sua condição canina em plenitude sem deixar de ser um cão doméstico e bem comportado com as pessoas.
Primeira conclusão: O Nicha teria de ter uma certa liberdade. Merecia conviver com os outros indivíduos segundo os comportamentos próprios da sua espécie. Nascera cão e devia aproveitar a vida ao máximo segundo a sua condição. No fundo o que eu desejava para mim ambicionava para ele.
Passou a ter direito de ir dar os seus passeios sozinho. Durante a sua adolescência ainda tive as minhas dores de cabeça. Ele não tinha muita experiência em atravessar estradas. As primeiras noites fora de casa, a namorar, foram de grande ansiedade. Mas com o passar dos anos tudo entrou numa concordância exemplar. Ele pedia para sair, geralmente à noite. E para entrar, de madrugada bastava um latido que eu detectava facilmente durante o sono e ia abrir a porta mesmo sem acordar. Durante o dia ele acompanhava-me sempre. Dormia em paz durante as aulas sem incomodar ninguém excepto quando sonhava alto. Nessas ocasiões fazia uns ruídos estranhos que pareciam guinchos suaves e que facilmente se entendia serem fruto de sonhos em que ele estava a ladrar. Ao mesmo tempo movimentava as patas. Sonhava que corria e ladrava ao mesmo tempo. Eu pedia muita desculpa ao professor pela interrupção da aula. Eles entendiam. Ele era um bom cão. E o curso era de Medicina Veterinária.
Espreguiçava-me no relvado em frente à sala onde iria começar a aula. Um Sol morno de Primavera resolvera alegrar a tarde. Esperavam-me as pequenas drosophilas melanogaster, as vulgares moscas da fruta, que durante mais de um século têm sido usadas pelos geneticistas e pelos estudantes de ciências várias quando se põem a brincar às leis de Mendel. Fechei os olhos e comecei a ouvir muito ao longe uns sons que identifiquei como sendo ganidos de cachorrinhos. Fui ver. Era uma ninhada. Uma rafeira caquéctica, amarela, amamentava dez cachorros que lhe sugavam o leite para além das suas capacidades metabólicas. Estava na sala onde os funcionários guardavam as selas dos cavalos e outros instrumentos misturados com lixo e tralha de todos os tipos. Nunca percebi o propósito daqueles casebres de granito. Parecia um pequeno gueto dentro do vasto recinto da universidade, onde trabalhadores cozinhavam e se refugiavam como se tratasse dos seus próprios lares.
Reparei num dos cahorros por ser oposto da mãe: uma bola gorducha, branca e preta. Peguei nele e nesse instante tornei-me sua, tornando-o meu.
Mal podia esperar que a aula acabasse. Só pensava na terrível possibilidade de ele já estar dado uma vez que era o mais bonito de todos.
“Podes leva-lo” Disse-me o Diamantino, o tratador dos animais, filho do chefe das análises clínicas. Aquilo era tudo uma grande família. Toda a gente era parente de alguém. O moço, muito simpático, lá me informou que aquele cachorro era filho de um Pastor Alemão que por ali passara um dia a deixar a sua carga genética.
Seria um cão grande, não importava. Era exactamente aquele que eu queria. Levei-o para casa. Tinha aproximadamente um mês. Já comia.
Não me ocorria nenhum nome por isso comecei por chamar-lhe simplesmente Bebé.
Aos quatro meses, tinha ele o tamanho quase de um burro, ainda era o Bebé. Reparei que as pessoas estranhavam o nome. Não fazia, de facto sentido, pois ele iria ser um garanhão, pensava eu orgulhosa. Tinha de lhe encontrar um nome. Mas estava difícil.
Nessa noite mal dormi. Pensava, reflectia, vasculhava nas histórias armazenadas na memória e nada. Já a madrugada se preparava para despontar quando me recordei da história dos irmãos Fanata e Canicha. Dos factos nada restou na minha lembrança. Só sei que eram dois irmãos com nomes bizarros. Fanata soava-me muito mal. Restava Canicha e assim ficou. Depois de alguns dias a tentar habituar-nos ao novo nome deixei cair a primeira sílaba e para sempre ficou o NICHA.
O Nicha era um cão perfeito. Andava comigo para todo o lado. Assistia às aulas. Ia almoçar à cantina. Fazia uma vida de estudante comum. Era o cão mais famoso do Campus. A mascote do curso. Amigo de todos os alunos e professores.
Tinha apenas um pequeno defeito: deitava pêlo. Economizei para comprar um aspirador. Foi a compra mais útil que fiz na vida.
A educação do Nicha forçou-me a longas horas de meditação. Queria encontrar um equilíbrio entre a vida normal de cão e a vida conveniente para um cão em convívio estreito com seres humanos. Passava horas a tentar descortinar uma maneira harmoniosa de permitir que ele desfrutasse da sua condição canina em plenitude sem deixar de ser um cão doméstico e bem comportado com as pessoas.
Primeira conclusão: O Nicha teria de ter uma certa liberdade. Merecia conviver com os outros indivíduos segundo os comportamentos próprios da sua espécie. Nascera cão e devia aproveitar a vida ao máximo segundo a sua condição. No fundo o que eu desejava para mim ambicionava para ele.
Passou a ter direito de ir dar os seus passeios sozinho. Durante a sua adolescência ainda tive as minhas dores de cabeça. Ele não tinha muita experiência em atravessar estradas. As primeiras noites fora de casa, a namorar, foram de grande ansiedade. Mas com o passar dos anos tudo entrou numa concordância exemplar. Ele pedia para sair, geralmente à noite. E para entrar, de madrugada bastava um latido que eu detectava facilmente durante o sono e ia abrir a porta mesmo sem acordar. Durante o dia ele acompanhava-me sempre. Dormia em paz durante as aulas sem incomodar ninguém excepto quando sonhava alto. Nessas ocasiões fazia uns ruídos estranhos que pareciam guinchos suaves e que facilmente se entendia serem fruto de sonhos em que ele estava a ladrar. Ao mesmo tempo movimentava as patas. Sonhava que corria e ladrava ao mesmo tempo. Eu pedia muita desculpa ao professor pela interrupção da aula. Eles entendiam. Ele era um bom cão. E o curso era de Medicina Veterinária.