O Velho
Em uma praça qualquer de qualquer lugar qualquer, um velho se reúne a outros velhos pra jogar um jogo tão velho quanto o jogo. Todas as tardes ele espera ansioso, não querendo ter que esperar por não querer encontrar o fim.
O xadrez é o último desafio honrado para ele, já que enfrentar as chagas de quem viveu o bastante para chegar ao ápice físico e já não lembra quando foi que começou a decair para ele não é um desafio, mas uma tolice. Sua memória recente não é boa, mas dá graças a Deus de ter aprendido algumas aberturas antes disso. Seu jogo é o espelho do que ele seria se fosse 50 anos mais jovem. Arma bem seu meio, mas deixa espaços pro adversário entrar afinal um jogo que se preocupa antes com a defesa perde primeiro.
O velho trabalha bem os seus cavalos que pingam na frente do outro rei ameaçando-o em desafio ao sacrifício sem hesitações comuns naqueles que temem não ter. Seus peões empurram as peças que ousam povoar o meio tentando marcar o feroz ataque dos cavalos. Seus bispos são sorrateiras flechas diagonais, ameaça constante para as torres e peões desavisados. Sua dama é uma assassina de elite que só ocupa um espaço que possibilite devastar a posição.
O jogo do velho é poético, artístico e devorador. Ele respeita quem senta a sua frente utilizando todas as cartas que dispõe. O jogo do velho é a última poesia presente naquele coração cansado. Há muito ele não desperdiça uma poesia pra uma mulher exigente de cortejo, pois há muito as mulheres não lhe parecem merecedoras de algo tão belo. A única mulher que o mereceu vive em sonho, apenas uma lembrança vaga do que deve ser um anjo no paraíso. O resto é apenas o fútil desejo de beber a água da fonte sem ter sede.
O jogo do velho não é um jogo que possa ensinar, é um jogo que se pode aprender tentando jogá-lo. O velho já não lembra a última vez que ensinou. Para ele é ridículo um velho querer ensinar o que não se pode ensinar, assim como os outros velhos que numa última força do pulmão cansado tenta inflar o ego contando estórias incríveis de um personagem jovem que não viveu senão nos anseios do velho. Ele não lembra qual foi a última vez que ensinou seus filhos, mas tem certeza que não o soube fazer. Se sempre um dia os pais são uma decepção para os filhos, que cheios de intolerância bravejam procurando o herói morto por adolescentes, os filhos acabam decepcionando seus pais no fim, pois eles não viraram os heróis que exigiram antes.
O jogo do velho é um jogo que devia ser o jogo jogado por todos. Um jogo de respeito e sabedoria, um jogo impiedoso, pois só merecem piedade aqueles que não merecem ser parte da humanidade. Quando alguém é digno de piedade, dignidade é uma palavra indigna. Piedade não é um fruto que pode ser colhido, a piedade é o que restou do fruto despedaçado por pássaros no chão. A piedade alimenta, mas envenena a alma dos piedosos e dos dignos de piedade. Abençoado é o homem que quando necessitado cobra aqueles que o devem respeito e gratidão. Amaldiçoado é o objeto utilizado para os piedosos tentarem uma redenção com sua consciência e com Deus.
O velho vive seu jogo e se orgulha dele. Ele viveu muito e sabe o que seu jogo não pode ter. Seu jogo não pode ter a loucura de achar que é perfeito e que os outros jogos não o são assim como um austríacozinho pensou ao virar o chefe do vizinho. A soberba é apenas um sintoma da megalomania. Seu jogo não pode ter desconfiança em momento algum. Ele deve confiar em sua força e deve confiar na honra do seu adversário, coisa que um cozinheiro africano não teve quando desconfiou do próprio povo a ponto de cozinhá-lo para comer, coisa que um georgiano sem caráter não pôde ter, pois nunca foi exemplo pros seus. O jogo do velho não pode ser extremo em defesa ou ataque assim como fez alguns homens de Deus ao transformar crianças em supostos mártires suicidas, homens que matam seu povo de fome em nome de Deus. O jogo do velho não pode ter fins que justificam meios como fez os líderes de um povo que veio do limite oprimido ao limite opressor, usando seu passado e seu nome como desculpa. O jogo do velho não pode tentar controlar tudo assim como fez os revolucionários da igualdade fajuta. O jogo do velho não pode ter a covardia e prepotência de um ex-alcolatra fantoche de perversos senhores da guerra, um homem que conseguiu destruir tudo que pôs a mão, um anti-midas que sai envergonhado pela porta da frente desejando desesperado sair pelos fundos.
O jogo do velho é a única coisa que lhe resta além dos sorrisos quando vê um cachorro brincando com uma criança, quando vê uma borboleta dançando o balé de seu vôo, quando vê aqueles queridos que ainda criam novas imagens pra sua memória, quando vê um velho filme do Carlitos ou quando ouve novamente uma música que dançou.
O velho fica sentado observando aquela praça cheia de outros velhos, fantasmas de carne e osso assombrando vagarosamente os jovens com a projeção do futuro inevitável. Objetos do exemplo do respeito fabricado, exigido pela lei criada pelos malditos piedosos, aqueles que precisam fazer média com sua consciência e com os velhos credores do seu respeito e gratidão. Para o velho, ele é um maldito exemplo de como a vida é e além do seu jogo só resta a ele a pacata ansiedade de esperar o olhar do anjo negro que já habita seu campo de visão, seus pensamentos e seus sonhos. O velho só sente uma culpa causada pela vaidade, a culpa de há muito desejar esse olhar.