Amigo ou amor oculto?

O responsável pelo amigo oculto do Recanto já havia enviado os e-mails com os nomes sorteados. Todos já sabiam quem haviam tirado como amigo oculto, e já preparavam suas poesias para serem entregues na data.

Muitos dos amigos sorteados eram realmente ocultos, quer dizer, teve gente que tirou quem nem conhecia no recanto e isso foi uma rica experiência para todos. Afinal puderam ler obras maravilhosas ao visitarem as páginas do até então oculto amigo, notando algumas similitudes e algumas diferenças de estilo e de gênero. O mesmo ocorreu com aqueles que já conheciam seu amigo oculto, e neste caso o encanto, ao visitarem a página do autor, foi descobrirem algo que não haviam notado da primeira vez em que leram suas obras.

Apesar da ótima idéia, não se podia, de fato, imaginar como seria gostoso escrever algo que fosse realmente digno para alguém, que, embora "oculto", fosse tão especial!

Houve quem foi esquecido! Mas a interação conseguida demonstrou ser muito interessante, num futuro próximo, criar idéias parecidas no intuito de aproximar mais os mebros desse ex-site, hoje sala de estar, onde a poesia e belas histórias são maravilhosamente servidas em "bandejas de prata"!

No recanto tem muita gente que não usa o próprio nome, mas um alcunha, ou apelido. O destino resolveu brincar com dois recantistas que usavam apelidos, e no sorteio um tirou o outro.

Um deles era Colibri Sonhador, que usava a foto de um beija-flor, e a outra era Flor Encantada, cuja foto era uma fada cercada por rosas. E de tanto um fuçar nos textos do outro, acabaram por se apaixonar. Sem que soubessem que era recíproca essa paixão, preparam seus presentes e se deixaram denunciar pelos versos da poesia.

Sem pensar Colibri Sonhador escreveu um lindo soneto para presentear sua amada amiga oculta e tentar através das entrelinhas demonstrar o que estava sentindo. Já a Flor Encantada, escreveu um maravilhoso rondel.

Os poemas eram assim tão apaixonados, tão meigos, tão sinceros, e o amor ente eles tão intenso e leal, que chamou a atenção de inúmeros recantistas e visitantes do site. Desta forma, surgiram poemas, contos, ensaios onde o tema era o amor de Colibri Sonhador e Flor Encantada. Um visitante comentou no rondel de Flor Encantada que seu outrora coração de pedra se derretera ao tomar conhecimento do amor entre os dois poetas...

E Colibri Sonhador, lendo o comentário do visitante derretido, percebeu, naquele momento, que lhe doía o derretimento de um outro homem, e assim, irremediavelmente acordou para a realidade mais ampla do que sentia.

Vendo o Perfil daquela Flor única, voltava a se confrontar com o fato de que sua Amiga ainda Oculta morava em outro Estado. Quantos mais se derreteriam por seu talento e por seu perfume?...

Então passou a planejar como a distância poderia se tornar menor.

Mas como ele poderia planejar uma viagem-surpresa?

E sua Amiga Oculta Encantada... Sua Flor Única... Como receberia este presente?...

Colibri Sonhador consultou o perfil de Flor Encantada, mas não havia menção de seu nome verdadeiro, o que poderia dificultar localizá-la na própria cidade onde a poetisa morava. Será que alguém desta cidade conhecia este pseudônimo?

No momento em que seu coração sentiu que esse amor era real,decidiu que nada seria obstáculo. Deixou a razão de lado e passou a agir com o coração. Seus poemas eram agora voltados para tudo que se referia a sua Flor única, de forma que viessem respostas informativas. Mas ele tinha pressa em tocá-la, sentir o calor do amor que veio como presente de amigo oculto, mas que despertou nele uma emoção diferente como nunca havia sentido. Pensou em pedir ajuda aos amigos poetas, mas como agir? Como fazer se já havia cogitado a dúvida de como a sua amada receberia essa surpresa.

Mas era o seu coração quem direcionava todas as coisas, e coração apaixonado não se engana, e a seu favor haviam dois fatores; Sua amada era real. Seu amor era real. Queria estar com ela na virada do ano, e tomou uma decisão apaixonadamente ousada. Teria que se declarar! E para isso usou um lindo acróstico onde revelou tudo o que sentia. Quando estava para postar o poema, encontrou lá uma poesia ainda mais ousada que a sua. Era de outro poeta que se apaixonara por Flor Encantada. E declarava isso abertamente num Soneto.

Colibri Sonhador ficou ainda mais enciumado quando viu que o soneto era da escola do Amargo, o que lhe dava um toque mais ousado. Na mente de Colibri Sonhador, esta ousadia poderia despertar a paixão de Flor Encantada pelo sonetista. Assim, Colibri Sonhador passou a acessar todos os sonetos publicados no Recanto das Letras, buscando inspiração e um modo de aprimorar sua técnica, já que não era muito bom em sonetos, principalmente os mais revolucionários.

Mas quando encontrou um certo soneto, ficou enlouquecido, pois fava mal do seu amor por Flor. E estava com um comentário da própria Flor Encantada.

O soneto era assim:

O Servo da Flor

Se é o Tempo, inestimável e árdua Fonte

De Caminho pra Retidão, então tu crês?

Antes de ti, e é necessário que eu te conte,

Antes da Flor, como galgar a Sensatez?...

O Lobo das Estepes, Guerreiro! Tendo partido

Pra se tornar Homem Honrado, mesmo animal

Contudo, rasga sua carne Caçadora, milesimal,

Pra admitir que, sem sua Flor, está perdido!

Mas se é vil natureza que um colibri visite a flor

Convido a Flor a libertar-se desse agouro mau

E veja Ela a vontade reta, sem pecado capital

No Lupino Corpo que sente agora Amor

Ao Perfume que jamais nenhum lobo sentiu:

Que se torne este Homem Lobo seu, Servil!

E no comentário a poetisa deixa entender que tinha sentimentos recíprocos por aquele recém chegado recantista. Isso o deixou arrasado. Decidiu romper com os sentimentos do próprio coração, e num último suspiro, (ou seria num último soneto?), termina com aquela situação!

Colibri Sonhador ainda sonhava, sonhava despérto, pisando nas ruas, acreditando que poderia encontrar a pessoa ideal, que lhe completaria em seu silêncio aterrador dos fins de semana domésticos, enclausurados. Mas vendo as cortinas do quarto ao seu redor, o teclado frio de seu laptop, as paredes frias de seu refúgio, entendeu.

O momento isolado em um quarto não é um claustro.

É uma chance. A introspecção é uma chance. De ouvir sua própria voz, seu próprio aprendizado. Suas próprias respostas.

E Colibri Sonhador não precisaria mais temer a solidão. Porque acabara de acordar.

Pensou em um soneto à altura, seu último soneto para aquela quimera infame, postou na esfera virtual, e sentiu dor:

Sem Pressa

Ah, Arte Ingrata! Que já! Acorda o desatento,

Que essa órbita publicamente desastrosa do Amor me arda,

A que, na sua frente, minha Flor me põe em guarda!

À qual, por amor, amava, exteriorizava o pensamento!...

Tardou-me a idéia! A Inspiração então me tarda!

E compreendi tardiamente, eu, verme gosmento,

Como iludi-me, como rasguei também minha farda

Como cuidando, Colibri Apaixonado, ao último momento!

Senti meu chorar e os teus olhos sinto enxutos!...

É tu, Flor, como o franco atirador, dessensibilizado

Da própria Voz e do Talento que ardente o lavra

Dor, não pelo Caçador, com seus golpes brutos,

Amor! Pela Flor Caçada, com que publicamente arrasado,

E assim o sou: não mais do que a Morte, tu me crava!

E o Recantista digitou cada letra de seu novo pseudônimo, sentiu essa vontade de mudar. Viu em total silêncio sua tela do laptop ser apagada, andou até o armário, escolheu uma camisa azul de botão, tomou um banho demorado olhando pra cada azulejo, ligou pros colegas do trabalho e finalmente conheceu aquele barzinho que os colegas tanto falaram. E viu. Flores. Tantas delas. E Colibri entendeu que não haveria pressa em um Jardim tão imenso. Não havia mais claustro. Nem medo.

Sem pressa.

FIM

Conto Coletivo de Marcelo Bancalero

Colaboradores: Cretchu, Ronaldo Rhusso, Déia Tuam e Mariah Bonitah.