UMA VIDA PARA RUBIÃO EM SEU LEITO DE MORTE

Devo ser mesmo um verdadeiro cristão. Até agora não consigo definir esta necessidade estúpida de escrever sobre meus últimos momentos na face da Terra. Lucidamente, nunca concebi a idéia de compartilhar com meus leitores - meus poucos e sádicos leitores - as minhas derradeiras aventuras. Que excitante deve ser para um jovem a narração doentia e amarga do definhar de um homem! Suponho que algumas mocinhas devem chegar ao orgasmo lendo o relato de minha morte, a minha inglória luta para não fazer essa última viagem, que se aproxima sem as glórias de uma carruagem. O adiamento, o escape de uma morte à sexta-feira à noite. Essas são as maiores conquistas no meu atual estágio. Envaidece-me deveras isso. Coisa mais grotesca seria morrer num dia desses. Eis a minha vitória contra a morte. Triunfo na batalha, mas a guerra já é fato consumado. Sou um soldado comum, em vias terminais, à espera de apenas um fim menos humilhante.

Sempre fui precoce. Alcancei a velhice já na minha juventude. E como isso me dava orgulho! Enquanto meus poucos amigos curtiam deliberadamente os prazeres da carne, com bebidas e mulheres, o velhote aqui, dedicava-se a fazer experiências. Eureka! Não queiram fazer isso em casa meninos. Não queiram fazer de vossas vidas um grande laboratório. O amor, o sexo, o conhaque, tudo para mim tinha a sensação de experimento. A que conclusão cheguei? Se descobri a fórmula da felicidade? Não, não, aquietai vossos traseiros na generosa e casta poltrona. Tudo que concluí é que fui sempre um infeliz tubo de ensaio, sempre a um passo do primeiro passo. Para que eu queria sapatos novos se não sabia caminhar? Para que eu queria vestimentas reais e túnicas de várias cores se o que eu mais precisava era de uma primitiva fralda descartável? Para que eu desejava charutos se ainda não tinha completo domínio da chupeta? Ah! Meus meninos leitores, velhos sofrem com reminiscências. Dói não saber apertar o gatilho e antecipar talvez em horas a minha partida. Dói acreditar em porvir nessa altura da vida. Sem essa idéia, tudo seria mais sereno, bastaria uma bala e estaria completo e feliz, absurda e inexistente matéria.

Desde que diagnosticaram a minha doença não tenho sido o mesmo. Câncer de pâncreas. Aprendi tudo sobre essa doença. Poderia até proferir palestras e seminários. Isso! Correr mundo, percorrer toda a Europa, descobrir outro continente se preciso, narrando em tom quase bem humorado as desgraças do câncer de pâncreas. Ganharia milhões de euros. E certamente estaria garantido o meu futuro. Investiria em fundos de pensão, compraria tudo, o diabo. Não, o máximo que a fortuna me ofertaria seria ter mais guloseimas e flores exóticas no meu funeral. Encomendaria acácias, tulipas e orquídeas selvagens. Talvez pudesse ter também uma lápide mais majestosa e um declamador de poesias a recitar em trovas minhas qualidades de homem honrado e severo observador da ordem e do progresso. Poderia sucumbir aos outros mortos e construir a melhor catatumba de todo o cemitério. Eles morreriam de inveja. Eu seria reverenciado por lá, uma espécie de coronel da terra dos pés juntos, um latifundiário do além.

Em quase 70 anos de vida, nunca gastei um tostão de tempo a pensar na morte. É certo também que não pensava na vida e não a vivia direito. O que fiz eu em todo esse tempo então? Desconfio que haja um mistério que desconheço. Acho que errei a minha missão, deveria ter, desde os 20, planejado a minha morte, reservado convites aos mais chegados, dedicado testamento, fotos incríveis, ensaiado frases inesquecíveis em momentos especiais, deixado uma nota grande com um precisado. Certamente, teria um velório com mais conteúdo. Algum desconhecido choraria por mim e diria que fui um grande homem, um notável filantrópico, que pessoas assim não poderiam morrer. Quem sabe, viraria nome de rua, de escola, transformar-me-ia em sorridentes estátuas? Minha pose favorita para estátua seria com as mãos semi-erguidas, com o espaço de mastro de bandeira entre os dedos da mão em punho. Em épocas de chuva, dedicados funcionários públicos colocariam ali um imenso guarda-chuva. Detestaria ficar molhado e ridículo em meio à sociedade.

Percebi que meus parentes e amigos estão mais amáveis para comigo. Ganhei mais respeito e carinho. Isso me alça à classe dos homens mais felizes do mundo. Sou miseravelmente feliz em meu leito de morte. Dei-me ao luxo de reler meus três livros lançados. Juntos, alcançaram a inacreditável marca de 602 cópias vendidas. Uns 200 restam fiados. Tenho centenas deles na minha biblioteca. Além de recheá-la e torná-la respeitável, faz de mim, possuidor egoísta de um grande tesouro. Acho que o mundo cometeu uma grande injustiça. Se as pessoas devorassem minha obra seriam talvez mais sábias, felizes e obesas como eu. Talvez algumas delas me fizessem companhia agora. Seriam solidárias comigo e entraríamos juntos, montados em jumentinhos no paraíso. Felizes e eternos.

Nunca tive um cachorro. Sempre me achei suficiente Para que possuir um cachorro se, intimamente, eu produzia latidos imensos e, tal qual o mais vassalo dos caninos, nunca exigi da vida mais do que ossos e restos de comida? E, talvez no acaso da chuva, um tapete velho estendido no canto da dispensa, me bastava. Eu fui meu próprio cão, um cão humilde que nunca, nem no seu melhor devaneio, desejou mais do que lhe era ofertado. Por baixo da mesa eu era feliz e me fiz obeso apenas com as migalhas. Minha idéia de felicidade sempre fora uma imensa mesa posta, com muita gente, onde sobrariam deliciosas migalhas. Ali eu seria o único cão a disputar comida com um Lázaro batido, mesquinho, martirizado e espiritual. Era mais rico do que Lázaro e suas chagas.

Nestes últimos dias, desenvolvi uma paixão carnal pela minha enfermeira. Minha irmã e seu generoso marido de bigode contrataram-me uma gostosa enfermeira. Com ela, caixas de fraldas geriátricas e uma odisséia de medicamentos. Desconfio que haja numa dessas caixas uma injeção paralisante para quando eu der uma crise irreversível. Sonho com essa hipótese dia sim dia não. Voltemos aos prazeres da carne. Minha irmã e seu domesticado marido não sabem, mas fiz-me de ranzinza e rabugento, cobrando apenas dois últimos desejos: que a enfermeira fosse nova e que vestisse uniforme branco, tal qual manda o figurino. O porquê oficial é que mulheres novas e solteiras têm mais paciência e disponibilidade. De branco, porque me dá mais confiança. Estava disposto a lançar mão de estatísticas e da ciência para conseguir o meu intento. Não foi preciso. Com doentes terminais não, os vivos não têm o direito de contrariar. Que seja feita sempre a nossa vontade assim na Terra como no céu. O amém ainda pode esperar. Agora, o segredo que levo comigo para o breve túmulo é que as mais novas e solteiras são mais atraentes e o branco realça melhor algumas marcas, deixando-as mais... atraentes. Generosa que é, a diabinha veio de roupas diabolicamente apertadas. Não pedi essa última condição, mas também não serei antiquado o bastante para ordenar ao guarda do prédio que barre a sua entrada. A enfermeira devolveu-me até a vontade de viver mais um pouco. Transformei-me num devorador de sopas de legumes. Minha última proeza foi lançar-me ao agrião como se fosse o Batmam numa de suas cruzadas contra o crime em Gotham City. Talvez eu prolongue meu idílio por mais uma semana. Ou duas.

Ficamos a maior parte do tempo juntos, sós, a dois. Gosto de fantasias. Sei que ela sabe que eu a desejo mais do que as doses de soro que me mantém com os olhos amarelos abertos, adiados da devoração dos ansiosos vermes. Às vezes, ela com uma saia curtíssima abaixa-se para recolher medicamentos. Como é desastrada! Sempre deixa os remédios cair. Eu como paciente colaborador, não reclamo. Quando ela faz esse gesto da arquitetura anatômica moderna, resolve oferecer-me a visão de uma paisagem mais comovente. Eu que já vendi meus olhos para devorar Picasso, Frida e outros demônios, agora admito que eles sempre estiveram errados, artisticamente equivocados e usurpadores. Isso sim é arte! Dois troncos carnudos que seguem juntos, inventando novos paralelos, numa avenida de si mesmos, até desembocarem, altos, soberanos, sob o véu branco, meu Éden mundano e para mim, impenetrável. A minha mais ardente e necessária idéia de utopia. Como estive errado esses anos todos!

Desejei a imortalidade literária, a glória humana. Agora, todos os dias avisto a calcinha da minha enfermeira e, confesso, meus tarados leitores, que não há glória maior do que esta. Desejar por apenas uma, talvez duas vezes, percorrer mesmo de leve, aquele mundo, que não julgo mundano nem celestial, senão vital. Se tivesse fortunas e um testamento deixaria tudo para essa mulher, esse monstro de branco, que na sua sádica tortura me tira e me acrescenta vida, tal qual o vai e vem do sexo, coisa sonhada e que só agora, recoloco o seu valor com a minha falida idéia de eternidade. Trocaria um terço de minha alma por um momento verdadeiro, de prazer, sem safenas, sem câncer e sem a humilhação das mãos dela procurando o melhor ângulo para higienizar as minhas partes íntimas. Mesmo que após o gozo, meu corpo desfalecesse e recolhesse seu coral disciplinado, para que a morte colocasse em campo seus aplicados soldados com machado e foice, à procura do meu primeiro pedaço. Mesmo que após o banquete, restasse-me apenas uma pequena capacidade de lembrança, poucos minutos, para que neles eu pudesse reavaliar a minha jornada e convencer-me da vida que eu não soube desejar. Isso tornaria meus últimos instantes de homem mais justos.

Anderson Alcântara
Enviado por Anderson Alcântara em 16/12/2008
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