FOI NA VÉSPERA DE NATAL...

FOI NA VÉSPERA DE NATAL…

Muitos natais se passaram desde aquele que mudou minha vida. A história que vou contar-lhes agora, guardei por longos anos, não sei se por medo do que diriam dela ou porque só hoje, mais de sessenta anos depois, tenho a compreensão do que aconteceu.

Eu devia ter uns quatro ou cinco anos, mas as imagens me chegam a memória com perfeita lucidez e exatidão de detalhes. O sol começava a banhar o céu de vermelho púrpura, em matizes que nenhum pintor jamais ousou aproximar-se. O vento soprava uma brisa fresca, anunciando a noite que chegava. As folhas secas faziam um doce bailado no ar, acompanhando o canto dos pássaros que voltavam aos ninhos no alto das àrvores. Da casa de soleira baixa, balhada de cal; telhado marcado de chuva; porta e janela; piso de cimento queimado, eu menino moleque, calças curtas; chinelinha de couro; estilingue no bolso, assistia a tudo com os olhos vibrantes da inocência. Olhos que sempre vêem o novo, não importa quantas vezes já aconteceu. Estava assim, absorto na beleza do momento, quando vi surgir no horizonte, a figura de um homem. Naquele tempo ele me pareceu muito velho, hoje sua lembrança me chega com o sabor da maturidade. Ele era alto, cabelos compridos em desalinho de cor cinza esbranquiçado, que o vento brincava ao seu bel prazer. A barba comprida fazia as vezes de moldura prata de um rosto de feições fortes; olhar negro penetrante, mas que deixava-se penetrar sem pudor. Vestia uma calça branca quase coberta por uma longa túnica de linho alvejado. Nos pés uma chinela de couro trançada por mãos hábeis de artesão. Trazia junto ao corpo uma sacola feita de um tecido grosso. Na mão o cajado era o apóio merecido ao corpo cansado.

Quando ele chegou junto a janela, abriu um largo sorriso e foi como se o sol voltasse a pino no céu. Seus tinham uma doçura que eu nunca havia visto antes.

- Meu filho, estou cansado e com sede. Venho de muito longe e pelos lugares por onde passo, algumas pessoas ao me aproximar, fecham suas portas; outras até me dão àgua e alimento, mas ficam distantes; somente poucas me acolhem.

Fiquei parado olhando aquele rosto que me passava uma sensação de paz. Por um momento fui tomado por um sentimento que nunca havia experimentado antes, uma vontade de cuidar daquele homem. Corri até a cozinha, pequei minha canequinha e coloquei àgua fresca da moringa; cortei uma farta fatia de pão de milho, especialidade de minha mãe e mais rápido do que vim, voltei. Com as mãos estendidas entreguei aqueles alimentos, mas minha vontade era de abraçar aquele homem. Peguei um banco e ofereci. Ao seu lado sentei no chão e fiquei observando-o, até que ele falou:

- Meu menino, tão bom seria se todos os homens olhassem uns aos outros com olhos de criança. Olhos sem preconceitos; sem julgamentos; que confiam e se entregam sem medo. Na Terra não haveria violência, só amor, sorrisos, palavras amenas, gestos de carinho e fraternidade. Eu ando por esse mundo e de muitas formas vou levando essa mensagem. Mas pequenino, poucos são os que abrem seus corações. Alguns escutam mas logo esquecem e seguem procurando o que nunca encontrarão do lado de fora. Contudo, a maioria nem sequer ouve. Aí sigo adiante, pois livres somos e livres seremos sempre. Sei que você ainda é muito jovem para compreender o que acabei de lhes dizer. Porém, as palavras são sementes que quando caem no solo fértil do coração das crianças, vão germinando e um dia tornam-se árvores que dão belos frutos.

Sorrindo ele entregou minha caneca. Pensei que estivesse com mais sede e corri para pegar àgua. Fui rápido como um raio, mas quando voltei não havia mais ninguém lá. Na estrada não tinha pegadas. Era como se ele tivesse sido engolido pelo sol que terminava seu ocaso. Fiquei sem entender como ele poderia ter sumido sem deixar pistas. Estava assim, quando senti a mão de meu pai sobre minha cabeça.

- Filho, que bom você me esperar com uma caneca de àgua. Estou muito cansado, a lida hoje foi dura e nada melhor do que voltar para casa e ser recebido com amor.

Fiquei calado e abracei meu pai. Muitos anos se passaram. Nunca mais tornei a ver aquele homem. Ninquém na vizinhança tinha visto nada naquele dia. Não contei nem mesmo para meu pai. Porém, nunca esqueci de nenhum detalhe. Segui minha vida tentando me tornar uma bela árvore de bons frutos. Hoje tenho a exata compreensão das palavras que ouvi naquele dia. São nos pequenos gestos diários que nos tornamos frutos saborosos para os que nos colhem ou frutos azedos e até estragados. É nossa a escolha. A semente é sempre a mesma, os solos onde elas caem e os cuidados que são dispensados para o seu cultivo, é que tornam os frutos diferentes. Nunca soube ou saberei quem era aquele homem, mas a véspera de natal passou a ser uma data especial. Não pelos presentes, pois poucos ganhei, mas porque me faz lembrar que preciso continuar cuidando do meu solo, para que nele brote sempre sementes que darão frutos doces que saciam a nossa fome de amor.

IAKISSODARA CAPIBARIBE.

IAKISSODARA CAPIBARIBE
Enviado por IAKISSODARA CAPIBARIBE em 09/12/2008
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