O CORTADOR DE CABELOS
Na vida, aprendeu apenas a cortar cabelos. Achava nesse ofício o sabor de sua função de homem. Nesse momento, deve estar lá no seu escuro salão, manuseando as suas duplas espadas. Vencendo a fome e o frio que há em todas as coisas. Abrindo uma moderna paisagem no jardim que cobre o cérebro do homem que ora, senta-se sobre a sua cadeira. Da sua cadeira, o Cortador domina o mundo. Para o Cortador, nos homens não há outra necessidade que não a de fregueses. Enxerga a espécie humana como uma irrealizável freguesia.
O Cortador não tem nome. Os homens o chamam por um humilde nome. Mas com as suas tesouras e sua ausência completa de vida, ele não cabe em nenhum nome.
Se algum dia um idílico ladrão lhe roubar suas tesouras, o Cortador comprará imediatamente outras. E mais outras. E as guardará num intransponível cofre. Não seria capaz de sobreviver um único dia sem cortar cabelos. O seu vício prolonga-lhe a existência. O cortador não conhece as funções do coração. Para ele, o coração é um bicho cheio de cordas, que bate ao ritmo de suas tesouradas. O Cortador não conhece outras formas de vida. Nunca respirou o ar de um jardim quando noite. Para ele, a noite é a época em que as criaturas se sentem livre do frenesi e se entregam de corpo e alma ao manejo de suas ferramentas.
Para o Cortador, a vida é uma imensa barbearia. Não há filosofia nem poesia nem ciência frente às suas tesouras. Com seus olhos de falcão, ele se aprimora cada dia mais. Dorme cada vez menos, se alimenta de forma reduzida. Não acredita nos arranjos do destino. O mundo, na visão do Cortador, precisa é de mais cortadores como ele.
Sonha pouco. Quando acontece, vê apenas cabeças colocadas na sua cadeira e duas enormes mãos empunhando enormes tesouras, exercem de forma milagrosa o ofício de libertar para sempre o cabelo. Sem paixão e sem cálculo. Continua a cortar. Algo lhe diz que continue. Cortar e esquecer-se de trancar as portas do mundo. Cortar e acordar cada vez mais cedo e dormir cada vez mais tarde, até o dia em que não haverá mais distinção de tempo e nem necessidade do repouso. Cortar, cortar, até a consumação dos séculos.
O Cortador cultiva apenas um secreto sonho: estar no juízo final com suas tesouras amoladas, e sem necessidade de recompensa e sem a ditadura do tempo, cortar cabelos infinitamente. Postar sua imensa cadeira e ir moldando sem descanso o visual dos sentenciados. Quando esgotar seu trabalho, recolher sua cadeira, suas tesouras e sua missão. Deitar fora as mãos e a alma.