Morrer de Vergonha

O rés-do-chão do número um da Rua do Galvão acabava de ser estriado por um jovem casal que regressava da sua lua-de-mel. Uma semana tinham passado descobrindo as delícias um do outro numa pensão muito jeitosa perto da terra de Hortênsia, lá para os lados de Viseu. Alfredo era um alfacinha de gema cujo o pai era da mesma zona da sua linda esposa. E num bailarico de Verão deixou-se encantar pelos modos airosos e pelas formas generosas da moça. Ela retribuiu. Não seria de admirar. Alfredo sempre agradara ao belo sexo. Não só pelo excelente aspecto físico como pela sua simpatia e modos carinhosos.
Namoraram por carta cerca de uma ano. Quando se voltaram a encontrar nas festas em homenagem à nossa senhora da Lapa ficaram noivos. Casaram dois meses depois com a firma certeza de que seriam felizes para todo o sempre.
Alfredo trabalhava como ajudante no talho do sr. Xavier há cerca de cinco anos. Era uma parceria agradável. O patrão era o seu melhor amigo e sentia-se orgulhoso do seu empregado como um pai que via o filho iniciar uma nova família.
Hortênsia e Alfredo prolongaram a lua-de-mel durante mais quatro meses. Conciliavam o trabalhão dele, a lida doméstica dela e o quotidiano caseiro de ambos com a prática do seu amor ardente. A vida era mansa.
Com a chegada da Primavera Alfredo contraiu uma febre alta. Caiu à cama. Contorceu-se com dores e o suor empapou inúmeros pijamas de dia e de noite. Era gripe, concluíram. Ao terceiro dia, encharcado em aspirinas e paracetamol resolveu ir trabalhar. Chegou ao fim do dia a casa de costas vergadas e bater os dentes de frio.
Hortênsia em vão tentou que chamassem um médico a casa. Alfredo foi peremptório: não seria uma simples gripe que o iria derrubar. Voltou ao talho no dia seguinte. E tornou a regressar ao lar cheio de dores. A esposa desesperava. Ele mal comia. Rebolava-se na cama com dores e aumentava a dose dos comprimidos.
Os dias foram passando. A febre baixou mas manteve-se sempre presente. As dores transformaram-se numas moinhas indefinidas ora de costas ora de cabeça. O apetite teimava em não regressar.
Hortênsia tentava a cura do marido com mezinhas caseiras. Alguém lhe aconselhara um xarope de cenouras que seria bom para as constipações. Uma vizinha sugerira um cataplasma de papas de linhaça que seria excelente para os pulmões. Eram tiros no escuro pois não entendia a origem da maleita do homem que amava. Por vezes um pensamento de profunda angústia a assaltava: “e se ele simplesmente estivesse a sofrer por desamor de mim?”
Alfredo, por entre as queixas cada vez mais silenciosas garantia-lhe que a amava tanto ou mais como num instante em que lhe pusera a vista em cima.
Chegou o Verão e com ele um silêncio aberrante entre os dois esposos. Alberto continuava a chegar do trabalho para se enfiar na cama. Não tinha apetite. Não falava.
Hortênsia chorava pelos cantos sem que ele desse conta. Os dias tornaram-se vagarosos e pesados. O calor não ajudava.
A rapariga concentrou as forças na esperança de um milagre divino. Começou a fazer promessas a santos e frequentar diariamente a igreja. Tinha fé.
Um dia Alfredo levantou-se com um sorriso nos lábios. Tomou o pequeno-almoço com a mulher à mesa da cozinha. Antes de sair disse-lhe: “hoje já me sinto melhor. Minha doçura, minha azeitonita, acho que passou a tormenta. Até logo.”
Hortênsia rejubilou, pensando que as suas preces tinham finalmente sido atendidas.
Eram cinco da tarde quando o Sr. Xavier telefonou para o domicílio do seu empregado.
Hortênsia correu ao hospital. Falou com o médico.
“ Não entendo como foi possível este homem aguentar tamanho suplício! A infecção destruiu-lhe totalmente os dois rins. Era impossível não ter dores lancinantes. Nunca reparou que o seu marido urinava sangue?”
“ Que tinha dores eu sabia. E reparava que ele manchava as cuecas de sangue mas como ele trabalha num talho achei que era de mexer nelas com as mãos sujas. No entanto também estranhei por ser um homem de tanto asseio...mas não me deitei a pensar no caso...”
“ Trabalhava. O seu marido trabalhava num talho, minha senhora. Ele acabou de morrer. Ainda teve tempo de me explicar que tinha tido vergonha de dizer que deitava sangue como se fosse uma mulher...Teve vergonha de parecer menos homem aos seus olhos...”
A viúva voltou à sua aldeia. Nada mais a prendia numa cidade grande onde tudo lhe lembrava a vergonha que matara o marido e a que sentia por ter sido tão estupidamente ingénua.
AnaMarques
Enviado por AnaMarques em 03/12/2008
Reeditado em 12/01/2009
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