Touços de Junça
Em Touços de Junça, em pleno Alto Douro vinhateiro, o Padre Alfredo acordara mais cedo do que o habitual. Deixara-se ficar na cama entregue aos seus pensamentos. Pensava na sua arenga da véspera no enterro da menina de três anos que não resistira à meningite. Já enterrara muito cristão. Nunca se tinha sentido assim tão brunal. Estava a ficar velho, concluiu. Pensou em sair pelos campos a fora, sentindo os rescendores da vegetação. Remédio santo para os males do espírito aconselhava ele sempre aos seus paroquianos. Mas o prenúncio do taró do mês de Janeiro às seis e meia da matina tolheu-lhe as forças.
Virou-se e tornou a virar-se na cama sem relego. Não lhe saia da ideia as palavras que proferira junto ao corpo da criança. O amor de Deus. Ai senhor, perdoai-me, que me sinto pior que um fruto sorvado. O sermão que serviria para alívio espiritual das gentes daquele povo nem a ele o convencera. Um chorrilho de traquibérnias, Senhor! A vontade de Deus? Nunca, Senhor! Não podia ser esta a vontade de Deus, salve seja! Então como pode Deus fechar o centro de saúde de São João da Pesqueira, tirando-lhes o Dr. Sanches que tantas vezes lhes valera, e fazer aquela família de sete bocas para alimentar percorrer curvas e contracurvas até Lamego para voltar a bater com o nariz na porta? Dois dias se perderam até ao diagnóstico e a bebé a arder em febre. Não me peçam para atirar as culpas em Deus! E no entanto assim fora, que Deus me perdoe, Senhor: Deus leva os que ama!
A Irmã Margarida. Lembrou-se da Irmã Margarida há vinte anos na Guiné. A ver morrer gente sem um lamento, sem um queixume. A escrever-lhe cartas religiosamente, todas as semanas. Partilhavam dores e alegrias. Uns morriam mas também se salvavam muitas almas que davam filhos com a ajuda de corações bondosos que ofereciam bens alimentares, medicamentos, livros e até dinheiro. Era o ciclo da vida, dizia ela. E nem quando a jovem de quinze anos com o tumor na perna que esperara meses pelo desembrulhar das burocracias para embarcar para Lisboa morrera na véspera da partida a Irmã Margarida soçobrou.
Padre Alfredo perguntava-se agora porque haviam três meses que não recebia notícias dela. Estava informado de que iria viajar para uma missão vizinha. Fez questão de o avisar que não se preocupasse se demorasse mais tempo a responder do que era habitual. Nessa manhã de Inverno em que a atrabílis parecia ter tomado conta do seu corpo imaginava a Irmã Margarida dentro do bucho de uma serpente.
E como nunca, sentiu-se absolutamente sem fé. Abandonado à sua sorte num mundo sem um belisco de conforto divino.
Em Touços de Junça, em pleno Alto Douro vinhateiro, o Padre Alfredo acordara mais cedo do que o habitual. Deixara-se ficar na cama entregue aos seus pensamentos. Pensava na sua arenga da véspera no enterro da menina de três anos que não resistira à meningite. Já enterrara muito cristão. Nunca se tinha sentido assim tão brunal. Estava a ficar velho, concluiu. Pensou em sair pelos campos a fora, sentindo os rescendores da vegetação. Remédio santo para os males do espírito aconselhava ele sempre aos seus paroquianos. Mas o prenúncio do taró do mês de Janeiro às seis e meia da matina tolheu-lhe as forças.
Virou-se e tornou a virar-se na cama sem relego. Não lhe saia da ideia as palavras que proferira junto ao corpo da criança. O amor de Deus. Ai senhor, perdoai-me, que me sinto pior que um fruto sorvado. O sermão que serviria para alívio espiritual das gentes daquele povo nem a ele o convencera. Um chorrilho de traquibérnias, Senhor! A vontade de Deus? Nunca, Senhor! Não podia ser esta a vontade de Deus, salve seja! Então como pode Deus fechar o centro de saúde de São João da Pesqueira, tirando-lhes o Dr. Sanches que tantas vezes lhes valera, e fazer aquela família de sete bocas para alimentar percorrer curvas e contracurvas até Lamego para voltar a bater com o nariz na porta? Dois dias se perderam até ao diagnóstico e a bebé a arder em febre. Não me peçam para atirar as culpas em Deus! E no entanto assim fora, que Deus me perdoe, Senhor: Deus leva os que ama!
A Irmã Margarida. Lembrou-se da Irmã Margarida há vinte anos na Guiné. A ver morrer gente sem um lamento, sem um queixume. A escrever-lhe cartas religiosamente, todas as semanas. Partilhavam dores e alegrias. Uns morriam mas também se salvavam muitas almas que davam filhos com a ajuda de corações bondosos que ofereciam bens alimentares, medicamentos, livros e até dinheiro. Era o ciclo da vida, dizia ela. E nem quando a jovem de quinze anos com o tumor na perna que esperara meses pelo desembrulhar das burocracias para embarcar para Lisboa morrera na véspera da partida a Irmã Margarida soçobrou.
Padre Alfredo perguntava-se agora porque haviam três meses que não recebia notícias dela. Estava informado de que iria viajar para uma missão vizinha. Fez questão de o avisar que não se preocupasse se demorasse mais tempo a responder do que era habitual. Nessa manhã de Inverno em que a atrabílis parecia ter tomado conta do seu corpo imaginava a Irmã Margarida dentro do bucho de uma serpente.
E como nunca, sentiu-se absolutamente sem fé. Abandonado à sua sorte num mundo sem um belisco de conforto divino.