Parto Difícil
PARTO DIFÍCIL
Estávamos no início do Outono e o frio ao anoitecer já fazia doer os ossos mas o caso era aliciante: uma vaca com dificuldades em parir o seu vitelo. Saiu em serviço o veterinário com o recorde de resolução de partos difíceis sem recorrer a cesariana, apesar de perito nesta cirurgia.
Éramos pouco mais de vinte alunos, em procissão de carros pelos 20 km de curvas e contracurvas no interior de Trás-os-Montes.
Um escuro absoluto coincidiu com a nossa chegada. Mas a jornada ainda não havia terminado. O palheiro era longe e o caminho fez-se às cegas, pontapeando pedras, amparando-nos uns nos outros seguindo o primeiro da fila, o dono do animal, que possuía uma fraca lanterna.
Dentro do casebre lá estava ela, uma bela vaca castanha de trabalho, aflita, arfando, gemendo, de forças esgotadas. Trouxeram gambiarras e começou o trabalho. Viam-se os quatro membros do vitelo à saída da vagina. Impunha-se a recolocação do vitelo na posição normal para que pudesse sair; havia que o esticar dentro do útero materno. O Professor meteu a mão e começou a empurrar. E foi empurrando, empurrando, empurrando até que já nos parecia uma eternidade sem nada acontecer. O vitelo não se movia um milímetro. Aumentou a intensidade da força. Tornou a empurrar desta vez gemendo, gemendo, acompanhando a força de contracção da vaca. Agora gemiam os dois. O homem suava e sofria como nunca teria imaginado ver um homem sofrer de parto. Começávamos a perceber que algo de errado havia. O desespero do clínico era evidente. A sua vasta experiência dizia-lhe que aquele caso era um fenómeno extraordinário. Os donos e vizinhos do animal estavam estupefactos. O homem fez uma pausa. Respirou fundo e voltou a meter o braço no canal de parto mas desta vez até ao ombro e começou a tactear lá por dentro. “Ai, ai, ai, ai, ai, que lhe estou a sentir um rim! Tragam o material: vamos para cesariana”
Foi uma azáfama. Duas dezenas de alunos a ajudar e atrapalhar ao mesmo tempo, tentando colocar os instrumentos a jeito. A experiência por fim tomara conta do assunto e o útero acabava de ser aberto com bisturi. O que vimos então, nessa noite memorável, foi algo de assombroso: nascera um monstro! Era um vitelo, sem vida, em forma de bola mas virado do avesso, com a pele no seu interior, as vísceras à mostra, e as quatro patas unidas num dos pólos... As pessoas da aldeia começaram a rezar, a benzer-se, algumas ajoelharam-se erguendo as mãos aos céus. Outros falavam em belzebu e também ouvi a palavra Satanás.
Eu sentia-me transportada para o mundo mágico. Mas sabia bem o que era aquele ser: Um Schistosoma reflexus, tal e qual vinha nos livros de teratologia. Um engano da natureza durante a vida embrionária. O projecto de vitelo, não se sabe bem por que vontades, parece que se vira do avesso.
Pensei cá para mim que a natureza era tão fantástica que até os erros que produzia podiam ser admiráveis.
A vaca pode por fim descansar em paz e os proprietários tentaram pagar os seus pecados na igreja local. E nós regressámos à cidade em êxtase.
PARTO DIFÍCIL
Estávamos no início do Outono e o frio ao anoitecer já fazia doer os ossos mas o caso era aliciante: uma vaca com dificuldades em parir o seu vitelo. Saiu em serviço o veterinário com o recorde de resolução de partos difíceis sem recorrer a cesariana, apesar de perito nesta cirurgia.
Éramos pouco mais de vinte alunos, em procissão de carros pelos 20 km de curvas e contracurvas no interior de Trás-os-Montes.
Um escuro absoluto coincidiu com a nossa chegada. Mas a jornada ainda não havia terminado. O palheiro era longe e o caminho fez-se às cegas, pontapeando pedras, amparando-nos uns nos outros seguindo o primeiro da fila, o dono do animal, que possuía uma fraca lanterna.
Dentro do casebre lá estava ela, uma bela vaca castanha de trabalho, aflita, arfando, gemendo, de forças esgotadas. Trouxeram gambiarras e começou o trabalho. Viam-se os quatro membros do vitelo à saída da vagina. Impunha-se a recolocação do vitelo na posição normal para que pudesse sair; havia que o esticar dentro do útero materno. O Professor meteu a mão e começou a empurrar. E foi empurrando, empurrando, empurrando até que já nos parecia uma eternidade sem nada acontecer. O vitelo não se movia um milímetro. Aumentou a intensidade da força. Tornou a empurrar desta vez gemendo, gemendo, acompanhando a força de contracção da vaca. Agora gemiam os dois. O homem suava e sofria como nunca teria imaginado ver um homem sofrer de parto. Começávamos a perceber que algo de errado havia. O desespero do clínico era evidente. A sua vasta experiência dizia-lhe que aquele caso era um fenómeno extraordinário. Os donos e vizinhos do animal estavam estupefactos. O homem fez uma pausa. Respirou fundo e voltou a meter o braço no canal de parto mas desta vez até ao ombro e começou a tactear lá por dentro. “Ai, ai, ai, ai, ai, que lhe estou a sentir um rim! Tragam o material: vamos para cesariana”
Foi uma azáfama. Duas dezenas de alunos a ajudar e atrapalhar ao mesmo tempo, tentando colocar os instrumentos a jeito. A experiência por fim tomara conta do assunto e o útero acabava de ser aberto com bisturi. O que vimos então, nessa noite memorável, foi algo de assombroso: nascera um monstro! Era um vitelo, sem vida, em forma de bola mas virado do avesso, com a pele no seu interior, as vísceras à mostra, e as quatro patas unidas num dos pólos... As pessoas da aldeia começaram a rezar, a benzer-se, algumas ajoelharam-se erguendo as mãos aos céus. Outros falavam em belzebu e também ouvi a palavra Satanás.
Eu sentia-me transportada para o mundo mágico. Mas sabia bem o que era aquele ser: Um Schistosoma reflexus, tal e qual vinha nos livros de teratologia. Um engano da natureza durante a vida embrionária. O projecto de vitelo, não se sabe bem por que vontades, parece que se vira do avesso.
Pensei cá para mim que a natureza era tão fantástica que até os erros que produzia podiam ser admiráveis.
A vaca pode por fim descansar em paz e os proprietários tentaram pagar os seus pecados na igreja local. E nós regressámos à cidade em êxtase.