UM DIA DE SORTE?
Herzog Yacoov despertou vagarosamente. Olhou a sua volta com desdenho. O desmazelo do barraco era assustador. Ainda deitado, virou-se, uma mola que se desprendera do surrado colchão lhe torturava há meses, deixando marcas que para ele convergiam em severa punição por parte do criador, certamente uma represália por ele ser um transeunte sem utilidade na existência. Os cabelos esvoaçados ornavam com a barba por fazer.
- Não sou nada, um traste descartável.
Yacoov esfregou os olhos avermelhados e arrotou a lavagem ingerida no dia anterior. Sentiu o incômodo cheiro de álcool emanar, o que lhe causava cotidianas náuseas. Mais uma punição divina, acreditava. Trôpego, levantou-se tropeçando em dezenas de garrafas vazias. Abriu a geladeira, não dispunha de nada além de um hambúrguer azulado, em decomposição. Segurou o hambúrguer e tentou acionar a chama do desfalecido fogão, o gás acabara. Seus remelentos olhos ardiam feitas bolas de fogo.
- Vida desprezível – gritou com todas as forças que ainda restavam.
Precisava espairecer. Pensou em ligar o televisor. Uma ponta de fio estava desligada. Com as mãos tremulas, conectou o fio à danificada tomada. Viu uma faísca azul e ouviu um estrondo. Um fio encostara-se ao outro e Yacoov sentiu a fumaça com cheiro de plástico queimado invadir o cubículo. O ar que era rarefeito, tornou-se intragável, o televisor estava imprestável. Herzog Yacoov abriu a janela da pocilga e viu o movimento da favela.
- Acredito ser este o meu limite – esbravejou.
Desnorteado, Herzog curvou os braços para trás e movimentou-se em círculos, tentando buscar uma justificativa para tantas provações que culminavam em derrocadas. Mal conseguia raciocinar , a reflexão exigia concentração, um corpo desnutrido pecava na ponderação do autoconhecimento.
Vestiu uma camiseta regata em final de carreira e uma surrada bermuda que sempre usava.
- Oi, Zog, bom dia! – saudou um vizinho.
“Zog”, era o apelido de Herzog Yacoov. Não respondeu à pergunta baseada em frase automática. Afinal aquele não era um bom dia. Avistou um deprimente boteco, entrou, encostou-se no balcão e pediu:
- Ceará, uma cachaça!
- Está com alguma moeda por acaso? – respondeu o dono do bar.
- Não.
- Então vê se me erra.
- Pode me abrir uma linha de crédito?
- Deus do céu! Já me deve uma fortuna e ainda por cima vem com essa? Vá roubar!
“Roubar”, era isso! Deveria bolar um plano, ser astuto e abocanhar uma bolada. Novamente cruzou os braços para trás e ganhou a viela.
- Preciso praticar um crime!
Herzog Yacoov refletiu e pensou que se fosse político, estaria bem encaminhado em sua recente empreitada. Mas não era ninguém, além de ser um brasileiro abandonado ainda recém nascido por um pai alemão e uma mãe judia, daí a justificativa para seu nome.
Constrangido, desceu o morro da favela e caminhou por horas, sem destino, tentando avistar uma luz que o guiasse à glória.
- Preciso roubar.
Herzog estava obcecado. A idéia do crime estava impregnada em sua insana mente. A fome era reclamada pelo estomago em repetitivas contrações. Viu uma lata de lixo. Pensou em apanhar algum alimento para engabelar a fome. Ponderou por um instante e falou em voz baixa:
- O que estou fazendo? Assaltantes não são mendigos!
Não! Em sua nova condição de bandido, não se permitiu tal deslize, não poderia ceder a uma simples manifestação do organismo. Agora tinha novos fundamentos, ele, Herzog, era o próprio crime. Empurrado por um súbito acesso de cólera, chutou a lata de lixo e viu um revólver escondido atrás da mesma. O destino providenciara a agradável surpresa, colocara propositadamente a arma à sua espera. Os deuses o estavam auxiliando na nova empreitada, examinou a arma, estava carregada. Colocou-a na cintura. Agora se sentia um bandido com disposição para “trabalhar”. Continuou andando e avistou uma pequena porta. O entra e sai de pessoas era frenético e saiam com os bolsos carregados, até a cintura servia como acondicionamento para guardar algo, só poderia ser dinheiro. Ficou de campana. Uma, duas...cinco horas ali, estático, passando o pano na cena, compenetrado, arquitetando uma maneira de invadir o local e anunciar o assalto.
- Certamente é dia de pagamento de alguma empresa!
O local era discreto, exatamente o que Herzog procurava. O que tinha a fazer era entrar, anunciar o assalto e sair rico. Com o fruto do crime, pensou em procurar sua ex-esposa, comprar uma casa e montar um mercadinho. Aquele era decididamente seu dia de sorte. Olhou mais uma vez pra a pequena porta, viu que todos exibiam um crachá de identificação ao entrarem.. Concluiu que era uma empresa grande, mais fácil para ser assaltada.
Esperou alguns minutos, conferiu a arma mais uma vez por precaução e se aproximou da entrada. Enquanto um senhor obeso apresentava o crachá, Herzog, num movimento rápido, empurrou-o e caíram juntos dentro do local. Herzog levantou-se com a rapidez que o crime exige, nem olhou, apontou a revólver e gritou:
- Todos deitados no chão, é um assalto, eu sou bandido ruim!
Levado pela ansiedade da cena, Herzog intencionalmente acionou o gatilho e disparou a arma. Apenas viu uma senhora grávida cair ao chão. Um segundo depois, Herzog sentiu um potente golpe no crânio e desmaiou.
Quando recobrou a consciência, viu-se num leito de hospital, ferido e algemado. Avivou a memória e lembrou-se do ocorrido. Não se conformava com a situação.
- Como fui capaz de matar uma mulher grávida?
Um enfermeiro afeminado se apresentou e foi logo falando:
- Abusadinho, hein? Que coragem e ousadia! Admiro pessoas como o senhor. Invadiu um local secreto da policia federal e ainda por cima fez o que fez?
- Que foi que fiz? – perguntou Herzog com apreensão.
- Agentes da polícia logo estarão aqui para falar com o senhor?
Herzog Yacoov coçou a testa, olhou para a janela e viu o horizonte alternar-se em tons cinza esmaecido e vermelho desbotado. O cinza era sua aura temerosa, o vermelho simbolizava o seu sangue que seria derramado. A atmosfera era degradante. Nuvens negras em riste, denotavam um esboço de tragédia anunciada.
Um segundo depois a sala estava lotada por agentes da polícia federal. Herzog sentiu que a mortalha da dor estava presente.
- Senhor Herzog Yacoov?
- Sou eu mesmo – respondeu com dificuldade.
- Estamos aqui em nome do governo brasileiro para lhe externar nossa gratidão por sua iniciativa em coibir o terrorismo em nossa pátria.
- Eu? Não estou entendendo?
- Todo herói é humilde. O senhor, quando atingiu o braço daquela mulher, impediu que a mesma acionasse o detonador. Ela era uma mulher bomba, estava com cinqüenta quilos de explosivos ocultos na falsa barriga que simulava um estado de gravidez.
Herzog sentiu a mão divina lhe acalentar a alma. O suor frio estava se dissipando, agora ele estava acrescido de uma contagiante onda de felicidade.
- Quer dizer que não estou preso?
- Não, absolutamente. Deixe-me tirar estas algemas. Apenas usamos este expediente para não dar alarde ao fato. Aceite nossas desculpas pelo incômodo.
- bom, já que sou um herói, posso ir embora pra casa?
- Ainda não – disse o agente simulando um riso.
- Não?
- Antes aceite este cheque que é a recompensa pela prisão da terrorista. E passe bem. Ah, ia me esquecendo, aqui estão suas credencias, o presidente o convida a fazer parte da corporação sem participar de concurso público, afinal, o senhor é um herói e agente da polícia federal.
Herzog ganhou a rua em liberdade. Olhou para o cheque, a quantia equivalia a cinqüenta mil dólares. Seus sonhos seriam finalmente realizados.
- Nada mal para um dia de trabalho. É uma pena, mas acho que vou abandonar a vida do crime.