Amor de mim

Continuei a vê-lo como meu único grande amor. Só não podia mais era alimentar a esperança de ser um dia sua esposa.

De seus cadernos na faculdade era eu quem cuidava. Seu alvoroço por movimentos políticos o fazia sempre estar incluso em muitos grupos de discussão. Eu ficava em sua retaguarda, assinando listas de freqüência por ele; e até os trabalhos de classe.

Seis anos de namoro e cinco de noivado. Cursávamos o último ano de Medicina. Além de tantos planos desenhados, muita coisa do enxoval já havíamos comprado. Todos os dias nós nos beijávamos e abraçávamos como se aquele fora o primeiro. Cumpríamos apenas o estágio obrigatório do fim do curso. Dali à formatura, apenas dias. Três semanas aproximadamente.

-E a pediatria como anda?

-Meu estágio, amor, está maravilhoso.

-O meu, na ginecologia, vai arrastar-se até três dias antes da colação de grau.

-Por quê?

-Descumprimento de datas, transferência de aulas, etc.

-Você está lindo.

-Tenho boas notícias.

-Fale rápido.

-Consegui o primeiro emprego. Casaremos no início do novo ano.

O abraço que trocamos foi o maior de todos do nosso noivado. Zeíldo nunca havia me abraçado assim. Vi-o emocionado. Falava com o coração.

-Tenho algo para lhe dizer. Não será nada bom pra você.

-Depois da notícia que você me deu, nada estragará meu dia. Mas fale. O que há?

-Fui infiel a você.

-Com quem?

-Uma enfermeira.

-Eu a conheço?

-Acho que sim.

-Diga-me o seu nome!

-Nunca! Desejo o perdão.

-Já o tem. Não repita o gesto. Logo mais serei sua por inteiro. Agora ainda não posso.

-Você é a maior mulher com quem cruzei. É um exemplo de fortidão, retidão de caráter...

Jantamos na casa de meus pais. Fiz questão de dizer-lhes a grande notícia. Quanto à outra, resolvi engavetá-la. Esquecer não conseguiria jamais. O homem da minha vida havia se deitado com outra.

Terminamos o curso, o estágio, colamos grau, tivemos um fim de ano bem alegre. Intensifiquei os preparativos para o enxoval. Ele começou a trabalhar no hospital Santa Marta e eu, a clinicar em pediatria na Casa de Saúde São Lucas. Ao final dos dias, estávamos sempre juntos. Conversávamos, ríamos, tecíamos belos planos.

Uma forte dor começa vagarosa. No início lateja, no meio dói, no fim deixa o estrago. Era quarta-feira. Preparava-me para ir jantar fora com ele. Tomei banho, pus a colônia de que ele mais gostava, além do vestido preto decotado que o levava sempre a elogiar minhas curvas. Fiquei na porta esperando Zeíldo um tempão. Não costumava atrasar-se.

-Boa-noite, Clara.

-Boa-noite, meu amor.

-Demorei!

-O que não lhe cai bem. É tão pontual...

-Hoje não sou mais ninguém.

-Já sei, perdeu o emprego!

-Antes fora! Uma ventania jogou-me em um precipício.

-Que houve, filho?

-Não sei como arrodear na conversa e demorar-me.

-Fale logo! Seja o que for. Não haverá mais casamento entre nós?

-Lembra-se dela?

-Dela, quem?

-A enfermeira!

-Sim. Passou. Eu te entendi.

-Está grávida. Tudo acabou entre nós, Clara. Não sou homem de fugir da raia. Vou casar-me com ela.

O mundo caiu sobre meus ombros. Entrei e fui dormir. No dia seguinte pela manhã fui à missa, confessei, comunguei e dei-me de presente passar o dia inteiro a passear. Retirei do balanço das ondas, dos beijos do vento, minha própria resposta. Haveria de conciliar meu grande amor por ele, sublimando em algum gesto digno de minha alma.

Ele casou-se com Dália no civil, apenas. Quando sua esposa foi à maternidade, procurei os dois e pedi para assistir o parto dela e ser a pediatra do filhinho que dali a algumas horas, nasceria.

Marcos Vinícius nasceu com quatro quilos e cinqüenta centímetros. Uma criança belíssima. Olhei-o e disse para mim mesmo: hei de cuidar-te como se meu o fosses. Quando te beijar, estarei mesmo é beijando ele, que tanto amo.

Ainda hoje me encontro com Zeíldo, abraço-o, tiro brincadeiras. Ele é o mesmo de sempre. Eu casei, tive três filhos, mas nunca consegui realizar-me como mulher. Após concluir os momentos mas íntimos, corria ao banheiro e, escondida de Aldo, chorava copiosamente.

-O que há com você, Clara?

-Nada...

Eu despistava. Mas era Zeíldo que me perseguia a memória. Quando lhe aperto a mão, sinto-o por dentro como se me beijasse o coração. Continuo a sentir por ele o mesmo forte amor de outrora. Ele foi e continua sendo um homem maravilhoso. É uma pena que não tenha deixado engravidar-me por ele, antes dela. Era essa a história que sempre desejei e que, desiludida, apenas assisti ao seu desenrolar, embora tenha sido nos braços e desejos de outra. Em Marquinho sublimo o fogo e a fumaça das minhas desconquistas. Mas é assim mesmo: uns vivem, outros são vividos. Conforto-me em tocá-lo quase todos os dias nas mais diversas reuniões que o destino nos obrigou a regarmos juntos. O giz do Zé risca a lousa e seja Zé ou João, hei de ser sempre Maria! Aprendi com a vida que devo amá-lo para sempre.