Elas e eu

O tempo me doía. Aguardava-o passar, numa espera ansiosa que violentava sombras e desejos. Duas mulheres fingiam me amar? Tolo, eu, viver uma crença disforme, já me anunciada como descabida, quando ouvia das duas que esses amores lhes eram indivisíveis.

Havia uma sombra que me falava mesmo. Duas árvores pendiam contra mim. Meu teatrinho cotidiano se esvaía, e apenas promessas de mudanças não cabiam mais entre nós. O viril secava, o homem sofria, o sacana se escondia: eu, cansado, já, carregava tudo aos ombros.

Casei-me com Débora e já namorava Elba. Aquela sabia desta e apenas me alertava que, após casados, o joguinho adúltero não poderia mais existir. Deu-me uma sentença além de esperada. Sua tolerância era zero. Cuidar-se bem para não tropeçar nos próprios passos.

A outra, sempre a outra, possuía feitiços doces que não me saciavam. Quanto mais os recebia, maior e mais forte seu encanto me ficava. Era como uma maré de águas adocicadas que iam e vinham até meus braços, num cotidiano pré-desenhado e que jamais falhava e que ao invés de afogar-me, fazia-me beber de seu mel.

Dividia as semanas com o tempo das duas. Cuidava-me bem para não me apresentar com desejos diluídos. Respeitava-as e para nenhuma terceira olhei em toda a minha vida. Ainda solteiro tive as duas sem que isso me fizesse provar qualquer problema. Toleravam-me, apenas.

- A roupa que você deu a Elba foi melhor escolhida do que a minha.

- Compro dois presentes, peço que o vendedor os embale com papéis iguais e os dou sem saber quem ganhou qual.

- Conversa fiada. Teu beijo cai mais para a boca dela. Deve ser mais adocicada. Eu, a legítima, sou saco das voltas para casa. Sempre estou pronta. Resolva-se: ou ela ou eu. Não dá mais para esperar que a ventania passe. Minha saia já subiu, todos viram a calcinha branca, riram e eu continuo a mesminha tola mulher, traída e frustrada.

Eu queria tanto trazer os carinhos polvilhados de safadeza de Elba e os pôr nas entranhas de Débora. Só isso. A esposa é dama suficiente para o desfile. A outra, louca fantasia cheia de mel.

Débora aconselha bem, tem um cheiro de delicadeza, mãos que aprenderam a afagar meu corpo. A outra possui o sabor dos tantos gemidos de prazer que meu corpo quer ouvir e saciar-se. A pele parece viver untada de desejos fortes. Seus lábios queimam meu falo, quando se encontram com os meus.

Certo dia li que, em hebraico, Débora – DVORÁ – significa abelha. A minha só beijava o meu mel, disso estava certo. Se não voava, como me dava tanto pólen em nossa colmeia?

Elba, desta nunca achei tradução qualquer. Talvez significasse carnaval. Suas cores eram espalhafatosas. Sua voz alta, buscadora dos escândalos. Seu corpo, a mais perfeita obra de arte que a natureza em dia de tufão agiu a fazer. Conhecia toda sua geografia. A da outra possuía valas imensas que não me permitiam invadir os pântanos, as planícies admiradas, as sedosas veredas que tão insistentemente pediam para passear sobre elas.

Em março fui expulso da casa de Débora. Com oito dias estava frente a frente com um advogado descasador. Horrores ouvi. Ela queria a metade de tudo que havíamos construído juntos e do meu salário como contador. Perdi a casa onde morávamos e a metade da casa da praia, além de ganhar a indiferença dos filhos. As contas advocatícias – diga-se altas – tive que pagar. O litígio foi a melhor lição de amor que experimentei. Verdade, sim: lição de amor!

De mala e cuia, fui sonhar com a outra. Que sonhos tristes bem diferentes de antes! A comida se repetia com um amargor estranho. O corpo, antes alvissaro, murchara, não cedia às festas escandalosas que engendrávamos nas noites barulhentas e alegres que sempre fizemos juntos.

Em setembro, na segunda semana do mês, fomos postos para fora da casa onde estávamos vivendo. Fui mandado embora da firma onde trabalhava, por excesso de faltas. Aluguei um quartinho estreito no centro de São Paulo onde fui viver só. Agora, nem possuo a abelha da qual roubei o mel, tampouco a louca que me dava suas asas para voarmos alto. Restaram-me da primeira o azedume do cortiço e da última, o ferrão nada inclemente. A abelha guardara o seu para, mais tarde, talvez, ferrar-me prazerosamente. Não sei, ou fazer-me outra cousa qualquer.

Elba ajuntou-se com um velho e desdentado juiz de direito. Andava de bolsa cheia. Alimentava dois ou três jovens sedentos de amores. Seu novo adultério quase não tinha cheiro.

Débora, a abelha rainha, quando chegava o fim do ano mandava nossos filhos levar-me um par de roupas novas, com sapatos, sabonetes, lâminas para barbear e um grande bolo de maisena – meu preferido.

À noite, antes de deitar-me, punha um CD para tocar a velha música de Lupícinio Rodrigues – “Cadeira Vazia” – na voz fabulosa de Elis Regina e chorava e bebia até altas horas da madrugada. É que o coração de Débora nunca deixou de ser grande como o é sua retidão de caráter. A cadeira lá em casa continuava vazia. Ela até permitia que eu a visitasse vez em quando, só não emprestava mais o seu coração para que eu pudesse amá-la novamente.

Não aconselho leitor algum ir até o adultério. As grandes mulheres são abelhas sábias que, mesmo sem usar seus ferrões, esmagam os adúlteros com gestos retos e com a força de suas grandiosidades. Eu não consigo mais olhar em seus olhos como antes gostava de fazê-lo. Deles saem faíscas estranhas que me dão medo.

A outra, besouro gostoso de pecar-se junto, não possui colmeia. Nem colibri era, porque amaras eram suas amarras. Algemou-me e jogou as chaves fora. Continua a rir-se do tempo e de nós, como se o mundo apenas fosse seu. É que ela não conjuga o verbo amar, sua alma é áspera como uma folha de papel grosso e sua vontade de pecar, bem maior do que todos os seus sonhos verdadeiros.