Dou-lhe outra chance
Dou-lhe outra chance!
Pedro Borba olhou-a nos olhos e disse:
-Não há bicho mais bruto que o homem. Eu, o mais bruto deles. De hoje em diante ou eu mudo em relação a você – pra melhor, ou vou morar no fundo de uma sepultura. Você merece ser feliz, Sidara; eu mereço tentar se ao seu lado ainda encontrar a sombra de antes.
-Venha comigo. Fiz o feijão que você adora. Vamos tentar mais uma vez sermos felizes. Nem lembro mais o que há guardado de nós na caixa escura do passado. Eu o amo de verdade.
A vizinhança nunca se acostumou com o espancamento diário que ele dispensava a ela. Uma saia curta, um batom mais forte, um brinco novo, enfim, qualquer coisa que a embelezasse ainda mais servia para assanhar seu ciúme mórbido.
-Você anda pondo esse perfume ativo para chamar a atenção dos homens.
-Pedro, isso é coisa de sua cabeça.
-É não! Você é safada mesmo!
Imaginariamente, entre ele e os filhos havia um anteparo que os afastava. Mas os filhos viam as discussões calorosas, as trocas de palavras e empurrões. Ela sempre saía machucada. Prometia deixá-lo só e voltar à casa dos pais.
Em setembro de um mil e novecentos e oitenta e seis ficou órfã de pai. Sua mãe veio a falecer dois anos depois. Com o dinheiro do pequeno bangalô em que eles viviam, comprou um carro para o marido e pôs o restinho, quase nada, numa conta de poupança. Quando isso se deu, ele passou uns três ou quatro meses melhor. Certo dia ligaram para ela. Já era noite alta. Ele havia acabado o carro envolvido em um acidente de trânsito. Sidara aprontou-se e correu ao local onde o outro estava.
-Meu filho, você se machucou?
-Você tinha que vir com essa saia curta e justa! Por que não ficou em casa?
-Você se machucou?
-Machuquei-me ao vê-la seminua à frente desses policiais.
-Pedro, não me seja injusto. Vim ao seu encontro para lhe prestar socorro.
-Antes tivesse ficado em casa!
-Você teve razão?
Estava embriagado. Perdeu a carteira de habilitação e a liberdade. A vítima morreu. Levaram-no para o presídio estadual e, lá, aguardou o julgamento que o condenou a oito anos de reclusão em regime fechado. Fora o seu quarto acidente grave e a sua terceira vítima fatal.
Sidara desdobrou-se em duas. Diariamente, quase, ia até o presídio vê-lo. Animava-o, levava-lhe livros e revistas atuais.
A falta de liberdade parecia ter-lhe modificado a alma. Sua fala, antes anímica, era agora pacata, pausada, firme. Prometia-lhe uma relação sadia. Jurou-lhe que mudaria a maneira de tratá-la.
-Amanhã o pai de vocês sairá do presídio.
-Vai começar tudo de novo, mãe. Vou morar com tia Cláudia.
-Filha, seu pai mudou.
-Não acredito, mãe.
-Aguarde-o. Este seu retorno vai ser mesmo diferente.
-Devia ter ido com meu irmão para Santa Catarina. Ele foi quem lucrou. Está livre de tudo.
-Você teria coragem de deixar sua mãe sozinha?
Antes de ir buscá-lo, elas fizeram questão de modificar a posição dos móveis na casa, pôr flores nos jarros, etc...
No trajeto de ida, conversaram acerca das coisas que lhes haviam acontecido. Um flash-back emergiu da memória. Desceram no último ponto antes do prédio. Andaram umas três dezenas de metros, passaram pela revista da entrada do presídio e apenas Sidara foi até a sala da direção. Ele já estava à sua espera.
Estava emocionada. Abraçou-o demoradamente, olhou-o nos olhos e lhe disse:
-Nosso casamento está recomeçando. Não aguentarei mais ser espancada. Meu amor por você deu provas de que é bem maior que o que aguentei de você por esses longos anos. Pensei bastante, refleti. Nosso filho não concordou comigo e foi embora morar com a tia em Florianópolis. Espero que você cumpra o que vem me prometendo. Saiba que eu o amo de verdade, mas não sou de ferro e não posso mais abdicar de meu amor próprio.
E foi quando ela ouviu dele, entre lágrimas e tremores de lábios, as palavras que pus no início deste conto. O leitor queira ir até eles e entendê-las melhor.
Sidara foi internada seis meses depois com oito fraturas de costelas, vítima da violência doméstica. Preferiu não prestar queixas à polícia. Deu-lhe uma nova chance. Sua filha foi morar com o irmão e nunca mais quis ver o pai.