AS TRANÇAS DE CECÍLIA (conto premiado)

Classificado em 3o lugar em concurso de conto http://www.arti-manhas.com/1_resultado_parcial_lima_barreto.html

A história estava pronta. Era só escrevê-la. Mas começar por onde? Pelo final, que é mais emocionante, ou pelo começo, que é triste, longo e pode desanimar o leitor preguiçoso? Estava confusa por onde começar e titubeou o dia inteiro com a máquina de escrever imprimindo em sua cabeça as letras disformes da história que precisava escrever, mas que não conseguia sequer começar. Impotente, foi dormir.

Com a luz apagada, cochilou dois minutos. Levantou-se repentinamente com os dedos borrados de tinta nanquim do bico de pena da caneta imaginária. Precisaria passar os dedos pelo papel e plá, plá, plá. Estava escrita em menos de dez minutos a história que rascunhara em sua mente por um dia a fio. Leu. Releu. Reconheceu-se ali, embebida em tinta. Cada curva que as palavras faziam no leito do papel branco era toda ela. Pensou por fim: Será que alguém confundiria autor e autoria ao ler aquelas linhas comoventes? Aquela era a única história que o leitor estava livre para confundir-se. Ela deixava. Era real, cada vírgula, cada reticência de uma página inteira. Suspirou entre um fio de lágrima.

Cecília havia prestado vestibular de jornalismo em uma faculdade particular. Passou. Alegrou-se toda e juntou os documentos para a matrícula. Estava decidida: pediria uma bolsa de estudos! Seus sonhos tornar-se-iam realidade! Dali para a carreira de escritora de crônicas em um jornal famoso da cidade era um pulinho... pensava alegremente.

- Você precisa se matricular no curso primeiro para pedir a bolsa depois. Não é assim como você está pensando, menina, universidade particular católica não é obra de caridade da igreja.

Aquelas palavras ecoavam em sua mente. Tirou uma boa nota no vestibular. Era uma aluna aplicada. Era injusto não conseguir estudar somente porque não tinha dinheiro para pagar aquele curso que tanto desejava fazer.

Onde acharia o dinheiro da matrícula? Sim, porque só achando jogado em algum canto mesmo porque só a matrícula custava o equivalente a três vezes o valor de um salário mínimo que ganhava como auxiliar de escritório. E como conseguiria juntar a mesma quantia para pagar a primeira mensalidade e só depois dar o calote e concorrer a tão sonhada bolsa de estudo?

Alegria durou pouco. Menos de uma semana, é verdade. Afinal, faculdade particular não é obra de caridade. Nem do governo, nem da igreja. Imprimiram-se aquelas palavras em sua mente e ecoavam entoando uma canção triste: desiste, ô, lá lá. Desiste, ô lê, lê.

Precisava pagar primeiro, receber um código... reduzir-se a um número de matrícula. Não foi dessa vez. Cecília contentou-se em passar e esqueceu daquele assunto até que dois meses depois, um dia pela manhã de oito de fevereiro, recebeu telefonema de uma amiga.

- Parabéns!

Como assim, parabéns? Faltava ainda um mês inteiro para que Cecília completasse seus dezoito anos. Estava ainda atordoada de sono. Não conseguia entender o porquê a amiga toda sorridente insistia em repetir aquelas palavras de felicitações por telefone.

- Você passou na faculdade pública, parabéns!

Por um momento não conseguiu respirar e nem conseguiu conter as suas lágrimas de emoção. Como assim? Havia passado em uma segunda faculdade? Não estava esperando por isso. Havia até esquecido que prestou vestibular em uma faculdade gratuita. Afinal, era aluna de escola pública, de um curso noturno e todos amigos, conhecidos e professores insistiam que ela tinha que fazer cursinho primeiro porque aluno de escola pública não tem preparo para entrar em faculdade pública. E ela acreditava naquilo.

Finalmente, Cecília descobriu que era tudo mentira aquele monte de bobagens que as pessoas insistiam em colocar na cabeça dela! O fato é que recebeu o melhor presente que pudera receber naquela manhã ensolarada de segunda-feira, um mês antes de seu aniversário: Passou em uma faculdade pública!

O problema agora seria outro: como convencer a mãe a deixá-la morar em uma cidade distante da sua? Não seria nada fácil, ainda mais porque a mãe não se cansava de repetir que uma doméstica ganha mais do que uma professora de português. Para quê fazer faculdade então? Para terminar a faculdade e ganhar o mesmo que uma doméstica? As palavras da mãe eram como combustível para que ela provasse o contrário. Será que conseguiria?

Na verdade, aquelas palavras da mãe magoavam Cecília. E para acrescentar-se às dela, nunca teve um professor que não reclamasse do salário pouco que acabava antes do término do mês. Sabia que eles mereciam ganhar muito mais pelo trabalho todo que tinham, mas pensava que talvez eles não quisessem mais concorrência e, por isso, inventavam que ganhavam muito pior do que ganhavam verdadeiramente: Era isso! Só podia ser isso! Ela precisava acreditar em uma desculpa para não desistir de fazer a matrícula em um curso de licenciatura no qual havia passado.

Pronto, seria professora, apesar das pragas da mãe: estudar para quê? Você vai ganhar menos do que uma doméstica que nunca foi na escola! E do desânimo dos professores: ganha pouco, ganha pouco, vou fazer outra coisa para sobreviver porque ser professor não dá!

E, assim, contrariando as idéias pré-concebidas da sociedade, Cecília foi-se embora com uma mala vazia de roupas e cheia de esperança.

Foram quatro anos de luta. Enfim, chegara o grande dia de pegar o canudo e tornar-se professora. Indescritível alegria. Logo conseguiu emprego em uma boa escola. Ganharia um salário razoável até. Muito menos do que ela gostaria de ganhar, mas razoável. Só que queria mais e foi fazer mestrado naquele mesmo ano.

Nossa! Agora seria mestre. Mestre na história da vida já era. Mas queria ser mestre em Lingüística. Seriam dois anos de estudos. Não poderia trabalhar muito, senão não daria conta do compromisso de pesquisa que acabara de assumir. Nossa! Aquilo tudo era um sonho que estava tornando-se realidade.

Durou apenas três meses a empolgação inicial. Sem apoio financeiro da família, Cecília tinha que trabalhar na escola à tarde e à noite, chegar em casa cansada, preparar algo para comer, preparar as aulas do dia seguinte, dormir, acordar bem cedo para ir à faculdade. Aquela rotina toda estava ficando pesada demais para uma garota tão pequenina e inexperiente como ela. Mas levou a sério seu compromisso com o trabalho e com a faculdade. A escola onde trabalhava é que não levou muito a sério e atrasou em três meses o salário de Cecília. Mandou-a embora em julho sem receber o salário atrasado. O que a garota faria então?

Cecília não poderia pedir dinheiro para a mãe, que não tinha nem a quantia de que precisava para sustentar os demais filhos e, afinal, trabalhava como doméstica. Pedir dinheiro à mãe era como assumir que uma doméstica ganha mais do que uma professora e isso era algo que não queria fazer de jeito nenhum.

Pensou... pensou... algumas universitárias têm paitrocínio. Outras têm maridotrocínio. E outras ainda saem com homens mais velhos e casados. E eles pagam as contas delas. Mas Cecília não conhecia nenhum homem velho e safado o suficiente para sustentá-la enquanto ela continuava estudando. Puxa! Já havia pensado tamanha besteira! Não conseguimos controlar nossa mente em momentos de desespero e crise. Isso jamais faria por dinheiro. Ultimamente não estava fazendo nem mesmo por amor...

Pensou em outra solução. Encontraria outro emprego logo, mas precisava de uma resposta imediata, afinal o estômago não espera o dia seguinte para roncar de fome e as contas não tiram férias escolares em julho.

Cecília não tinha dinheiro para nada. Nem sequer para comprar um rolo de papel higiênico, que estava quase acabando. Tomou uma atitude desesperadora. Pegou o ônibus, foi até o centro da cidade e entrou em um salão de beleza dos mais elegantes. Sentou-se na cadeira da cabeleireira, que veio com uma tesoura prateada e reluzente para cortar seus cachos dourados.

Foi rápida para que Cecília não se arrependesse. Aos poucos os cachinhos que caiam sobre os ombros e iam se alinhar logo abaixo dos seios da menina cederam lugar a um vazio sepulcral. Suas longas tranças foram transformadas em pequenas recordações. Cecília voltou para casa naquele dia com muitas sacolas cheias e com a cabeça vazia.

Para onde olhava, naquela dispensa cheia em sua casa, lembrava-se de seus cabelos longos. Das tranças que fazia em seus cabelos. Dos rabos de cavalo, dos coques... Colocava uma colher de arroz na boca e sentia o sabor de seus cabelos, o cheiro de seus cabelos, a textura de seus cabelos macios e soltinhos. Perdeu a vontade de comer arroz.

Realmente a mãe tinha razão! Mas não podia admitir para ela, só para si. Conhecimento traz angústia... e uma doméstica ganha mesmo mais do que um professor e agora ela sabia disso.

O choro e a tristeza duraram apenas um dia. Na manhã seguinte, todos elogiavam o novo corte de cabelo de Cecília. Combinava com aquela nova fase de mestranda e professora de português. Era chique. Parecia que estava mais nova, mais magra. Menos escondida atrás daquele cabelo rebelde de adolescente. Orelhas à mostra. O nariz empinado se sobressaia no visual elegante. Ficou até mais confiante de si. E ninguém suspeitava que Cecília estava vestindo cabelo, comendo cabelo, lavando louça com fios de seu cabelo dourado, usando cabelo para limpar-se no banheiro...

Não tardou para que conseguisse outro emprego. Menos de uma semana. E o cabelo daquele mês daria para passar o mês inteiro até que recebesse o próximo salário. E foi assim. Orgulhosa de si, ainda com o nariz empinado, trabalhou até outubro daquele ano, quando recebeu uma bolsa de estudos. Não precisaria mais comer cabelo e nem dormir no ônibus para não ter que cochilar na sala de aula. Nem precisaria pensar que não teve paitrocínio e nem maridotrocínio para poder sobreviver.

Agora teria tempo suficiente para dedicar-se à sua pesquisa e para estudar ainda um pouco mais do que o necessário para poder prestar um concurso para professora da escola pública. Era um sonho que estava tornando-se realidade. E dessa vez era para valer! Contentaria-se em dar aulas para o ensino fundamental e médio e teria um acréscimo no salário da escola pública por ter feito mestrado. Queria a segurança que um cargo público proporcionava. Era a realização de um sonho. Mas seu sonho mudou de direção.

Logo que terminou o mestrado, foi contratada para dar aulas em uma faculdade particular. Era mais do que sonhou um dia. Suspirou profundamente no dia em que recebeu seu primeiro salário. Graças aos céus que uma professora ganhava muito mais do que ela imaginava. Poderia até mesmo ajudar a mãe com seu salário de professora.

Cecília estava contente apenas por ter terminado uma etapa difícil de sua fase acadêmica. E mais contente ainda por estar lecionando em uma faculdade. Mas seu contentamento durou pouco tempo apenas e foi então que ela decidiu fazer doutorado. Não porque queria ser mais do que já era, mas porque não tinha mais muita coisa para fazer e sentia falta de preencher todo o seu tempo com aulas.

Tentou mais de uma vez entrar no doutorado. Da primeira, passou em todas as fases de provas, mas foi reprovada na entrevista. Alegaram falta de maturidade acadêmica. Quinze minutos de entrevista e julgam uma vida inteira por falta de maturidade. Cecília concordou com o resultado. Mas chorou mesmo assim. Afinal, uma garota de apenas vinte e quatro anos e quase sem nenhum artigo publicado fazendo doutorado é raro. Não se vê muitas dessas por aí. Será que ela tinha o direito de ser a primeira? Ainda mais na área de ensino. Uma menina-professora fazendo doutorado... isso sim era raro. Mas não desistiu e, na segunda tentativa, passou em sétimo lugar nas provas, na entrevista... quase não acreditava. Doutora era mais do que sonhou um dia.

Seria doutora! Médicos são doutores, mas nem todo médico faz doutorado. Advogados são doutores e também passam bem longe da universidade assim que terminam a graduação. Juízes são doutores por direito e também não são doutores por titulação. E ela seria doutora e sabia que ninguém a chamaria de doutora Cecília. Aliás, por saberem disso, algumas pessoas atreveram-se a perguntar em que área da medicina ela se especializaria. Com um sorriso maroto no canto dos lábios, respondia apenas com um abano de cabeça e ruídos guturais: Lingüística. As pessoas arregalavam os olhos e soltavam um ah! O que seria aquilo? Deveria ser médica de línguas. Deviam pensar. Na verdade, era um pouco médica sim, porque sempre soube que falta de educação quem cura é o professor.

Aquela era a história que queria contar. O resto era apenas especulação.

Langeli
Enviado por Langeli em 29/07/2008
Reeditado em 08/08/2009
Código do texto: T1103049
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