Janela para o além
Houve um tempo que eu tinha um canal aberto com o além. Nunca entendi direito, mas todo mundo que eu conhecia quando morria vinha me avisar. Acho que eu tinha uma mediunidade e não sabia controlar. Ainda bem que esse tal canal foi fechando e hoje dificilmente ele abre. Mas na época que estou falando era de uma atividade de causar inveja.
Não que morresse muito amigo meu, não estou dizendo isso, mas tinha amigos e colegas do meu pai, de minha mãe e as vezes até de parentes distantes que me usavam para cumprir a missão.
Aquilo era um saco e, tenho a impressão que devia ser um item do regulamento pra entrar.
O cara chegava no tal portão, o porteiro consultava uma lista e perguntava:
-Já avisou aos amigos?
-Não, respondia o candidato ao paraíso.
Então vá avisar e volte aqui para fazer o Check In.
O cara despencava de lá e saia feito um doido para avisar aos amigos que tinha passado dessa pra melhor (ou pior, não sei o destino).
Alguns eram até discretos, apareciam, passavam de um lugar pra outro na minha frente ou se esfumavam no ar, sem causar maiores sustos. Outros eram escandalosos, me acordavam com puxões e sacudidas, típicas de quem tem pressa de voltar para uma fila. Imagino que devia ser isso, porque era um tal sacudir punho de rede, empurrar cama ou agarrar pelo braço que não tem explicação lógica.
O pior era que era sempre à noite quando estava dormindo ou quase. Até hoje tenho dúvidas se aquilo era um pesadelo ou se era mesmo aviso. O que me deixa meio propenso a acreditar em aviso, era porque sempre que eu contava, chegava um telegrama ou alguém telefonava dizendo que fulano tinha morrido ontem, coisa que já sabia de antemão.
O que vou contar foi típico dessa situação.
Aconteceu que um parente ia se casar. Não sei se ainda é assim, com essas mudanças, encíclicas e tudo mais, mas antigamente tinha-se que ir na paróquia em que o dito se batizara para apanhar um documento chamado batistério pra poder correr os banhos. No nordeste o nome era esse mesmo, banhos, não perguntem porque. A única coisa que vem à cabeça é que as pessoas só tomavam banho quando iam se casar. Pode ser, né?
O fato é que fui o escalado pra ir apanhar o tal batistério em uma cidade meio distante de onde morava.
Fui de ônibus, e já na rodoviária a coisa começou a degringolar. Venderam o meu lugar duas vezes e tive que enfrentar um velho gordo que dizia ter comprado a passagem dele primeiro e que eu tinha de sair do assento dele. Provocado nos brios disse que não saia, a discussão foi tomando vulto e quem não saia mesmo era o ônibus. Depois de muita disputa, chegou um fiscal da empresa que salomonicamente perguntou se eu aceitava mudar de lugar já que pela relação que ele tinha, o meu contendor tinha mesmo comprado passagem antes de mim. Aceitei numa boa e o velho se instalou na cadeira e de vez em quando me olhava com ar de triunfo. Saímos e na parada para o almoço, outra bronca. Dessa vez bateram a carteira de um passageiro, a policia veio, foi todo mundo pra delegacia, revistaram o ônibus todo inteligentemente e, claro, a carteira não foi encontrada. Toca a andar, a vitima se lamentou a viagem toda e quando chegamos no destino já era noite.
Fui pra casa de umas parentas que me hospedaram, jantamos e ficamos conversando sobre as coisas da vida e da morte porque o pai delas tinha morrido recentemente e eu ainda não sabia. Lembramos como o falecido era gente boa, bateu saudade todo mundo chorou um pouco e chegou a hora de dormir.
Olhe que não sou luxento pra esse negocio de dormir. Fui engenheiro de obra e quem conhece o ritmo sabe que a gente dorme até dentro de um buraco. O tal de residente de trecho, se for metido a besta tem vida curta e morre logo, vitima de desinteria por causa da comida ou de sono por não dormir direito.
O quarto que me destinaram era o melhor da casa, uma redinha branca e cheirosa me esperava. Só não me falaram que aquele era o quarto do pai delas e onde ele tinha se passado dessa pra melhor, sido velado rezado etc, todo esse ritual. Se tivessem me avisado, teria ido dormir no quintal, com medo do tal canal com o além.
Me preparei e cansado com estava cai na redinha, lembrando a briga com o velho, o roubo da carteira do homem, a estrada esburacada e, planejando como faria no dia seguinte pra apanhar o tal do batistério. Ou seja esqueci completamente da morte do pai das meninas...
A casa ficou silenciosa, tudo escuro e veio a velha modorra que antecede ao sono. Estava quase dormindo quando um violento puxão no punho da rede me sacudiu todo e em seguida uma mão alisou meu cabelo.
-Pronto, pensei, mais um que morreu.
Que nada. Aquele não satisfeito por ter me balançado e puxado os cabelos, resolveu acender a luz e ficar mexendo num cofre que tinha no canto do quarto. Arrisquei o olho e só via o cilindro do segredo girar para um lado e para o outro acionado por uma mão invisível.
Acho que depois que se morre fica-se desmemoriado porque ele pelo jeito não se lembrava direito do segredo. Terminou desistindo de abrir o cofre, apagou a luz, deu mais uma balançada na minha rede e foi embora.
Daí pra frente não dormi mais, passei a noite toda acordado. Abri uma janela que dava pra rua, deserta e escura naquela hora, e esgotei uma carteira de cigarros ouvindo o relógio da igreja bater as horas e as meias horas.
No outro dia, sonado e, evidentemente, sem falar nada pras minhas hospedeiras, fui no vigário, apanhei o tal do batistério e dei no pé de volta, apesar da insistência das meninas que ficasse por lá mais uns dias descansando. Imagina se eu sou maluco...
Em conclusão, meu parente casou,foi um desastre, descasou depois e cada um tomou seu rumo.
Eu sabia que aquele casamento não ia dar certo porque não tenho dúvidas de que o falecido veio avisar pra não me meter com aquilo.