E O DIABO VIROU CRENTE
O templo evangélico estava superlotado!
Era aquela uma reunião especial. Fora anunciada durante a semana inteira. Todos os religiosos ali estavam na expectativa de presenciarem o depoimento de transformação daquele que era considerado um dos mais notáveis babalorixás da Bahia, cuja clientela abrangia artistas, políticos e gente da mais alta sociedade: Pai Chiquinho do Ogunjá.
Era essa também a grande oportunidade encontrada pelo pregador dessa igreja, Eduardo, para tentar cumprir uma determinação administrativa: aumentar substancialmente o valor da arrecadação das ofertas. Aos seus superiores, ele já havia alegado que ali era era uma comunidade de baixa renda, impossível de grandes ofertas, porém de nada adiantou. Até foi ameaçado de ser transferido para um lugar longínquo. Agora, depois deste extraordinário evento, as coisas certamente poderiam mudar, pois estaria mais fácil convencer aquele pobre rebanho a fazer um sacrifício maior.
E foi com grande entusiasmo que o pastor Eduardo apontando para o popular curandeiro, anunciou:
- Aí está, irmãos, a derrota de Satã e uma imensa vitória da nossa igreja! Ele que fazia a desgraça alheia, que servia aos espíritos malígnos, ao Demônio... agora já é um homem completamente transformado, uma nova criatura! Francisco Pereira dos Santos, mais conhecido como Pai Chiquinho do Ogunjá, o feiticeiro. Procurou-me à semana passada, fiz um trabalho com ele usando o nosso poder, e hoje aqui está ele para servir a nossa igreja.
Dito isso, o convocou a subir ao púlpito:
- Venha irmão, dar o seu próprio testemunho!
Após uma salva de palmas e de gritos de "aleluia", Chiquinho do Ogunjá, tomando o microfone, pôs-se a falar:
- Como todos devem saber, fui um renomado macumbeiro. Estava sempre na TV, nas Rádios, nos Jornais, procurado pela mídia e por gente importante. Tinha prestígio, poder e uma ótima vida financeira. De repente, tudo virou em nada. Me vi, então, (puxa vida!) no fundo do poço e sem achar uma saída. Foi quando o meu patrão, sem mais poder fazer algo por mim, aconselhou-me a procurar esta igreja e este pastor.
Brados de "aleluias" ecoaram de novo naquele recinto. Aí o pregador, interveio, dizendo-lhe:
- E esse seu patrão só pode ser agora Jesus Cristo, não é Francisco?
- Nada - respondeu sem titubear, o pai-de-santo. - O meu patrão é o Lúcifer, e você não já sabe disso?
A igreja veio abaixo. O pastor ficou estático, engasgado. Mas depois conseguiu falar:
- Você quis dizer ex-patrão, não foi?
- Não - ele foi taxativo; - o Pai das Trevas ainda é o meu patrão.Ah, eu sou muito fiel!
Ao ouvir isso o Pr. Eduardo, demonstrando contrariedade, dirigiu o olhar para aquela atônita platéia e se saiu com a seguinte argumentação:
- Estão vendo, irmãos? O diabo não quer ainda admitir o seu fracasso, não quer ser humilhado. - E depois, voltando ao pai-de-santo, disse - Francisco, você é agora uma criatura livre e a maldade do seu ex-patrão aqui não entra; não tenha medo!
- Acontece que foi ele quem me encaminhou para aqui, não posso negar isso! - reiterava o babalorixá.
- Está bem. Mas, com certeza, não foi com a intenção de fazer-lhe o bem. Só que o tiro saiu pela culatra. Ele é mau e burro também!
- Epa! - protestou Chiquinho de Ogunjá - Não fale assim do meu patrão, não! Cadê a sua amizade para com ele?
O momento certamente não era adequado, mas não é que a estranheza do pai-de-santo tinha sentido? Pois há uma semana atrás, num encontro reservado que tivera com aquele pastor para comunicar-lhe o desejo de virar cristão, ouviu do mesmo a confissão de um relacionamento de amizade que estava a existir entre ele e o Exu. O religioso chegou a ser enfático na afirmação: "Agora o Demônio não é mais o nosso inimigo, tornou-se até nosso colaborador".
Rrealmente é estranha esta história e difícil de se acreditar nela. Todavia, relatando-se agora o seu princípio, tornará mais fácil a sua copreensão. É o que faremos:
Tudo começou quando, um certo dia, em seu terreiro, o pai-de-santo queixava-se amargamente da situação que ora atravessava. De fato, encontrava-se em completa decadência. Lamentava a má sorte que enfrentava, logo ele que fora um babalorixá de reconhecido valor. Alegava que o motivo disso era por estar sendo desprezado pelo patrão espiritual e o pior, sem este lhe dar nenhuma justificativa. Isso não era correto - afirmava ele - para quem sempre fora, como ele, um servo fiel. Foi quando o Exu, manifestando-se através do seu secretário, o curujebó, perguntou-lhe:
- O que você está aí se lamuriando, Chiquinho?
- O desamparo que o chefe me relegou - respondeu ele chorando. - Estou prestes a fechar o nosso terreiro!
- Olhe, Chiquinho - disse o diabo engrossando a voz, - eu só estou lhe dando atenção porque, apesar dos pesares, você foi um bom servidor para mim. Não posso negar isso. Agora vou lhe dizer uma coisa: detesto ver homem velho chorar! Vê se pára com isso, pô!
Está bem, patrão - falou ele engolindo o choro. Depois desabafou - Mas parece que o senhor perdeu a consideração para com os seus servos!
O Demo preferiu não responder. E o pai-de-santo, continuou:
- Veja, por exemplo: os evangélicos estão atacando sistemáticamente os nossos cultos, destruindo os nossos trabalhos e o Sr. nada faz para impedir isso. Estar a permitir que seus pastores conquistem toda a nossa clientela, falindo o nosso negócio...
- E quer saber o porquê? - resolveu responder o Exu - Porque agora os meus amigos e servidores são exatamente muitos desses pastores. São mais modernos, mais espertos e, portanto, mais eficientes do que vocês macumbeiros. Sinto muito, Chiquinho, mas você está ultrapassado!
- Caramba! - espantou-se ele - Como o chefe está mudado!
- Pois é. Não se lembra que uma vez eu o aconselhei a tornar-se pregador evangélico?
- Ah, lembro, sim. Mas pensei que o patrão estava só brincando.
Está vendo? Não me atendeu e ficou para trás. Foi por isso que eu me afastei de você e de outros também. Sabe, Chiquinho, a melhor maneira de me servir nos dias atuais, não é mais em terreiro, cemitério, encruzilhada... porém nessas novas igrejas. Ali ninguém desconfia de nada. Ali eu ganho almas de qualidade! Eu tenho que evoluir, cara! Ou você pensa que o diabo é burro? Chega de bozó, ebó, charuto, cachaça, farofa, galinha preta... chega dessa pobreza! Isso é coisa pra diabo pé-de-chinelo!... o que não é, evidentemente, o meu caso - concluiu com orgulho, o capeta. E depois sugeriu:
-Você precisa é abrir uma igreja, seu besta! Já lhe falei! Como pastor você vai faturar e é muito. O seu prestígio vai ser maior e você não vai sofrer nenhum tipo de perseguição!
Pasmo, Chiquinho do Ogunjá, indagou:
- O Sr. está propondo, também, que eu mude de patrão?
- Que é isso?! - exclamou o Demo - Eita sujeito burro! Você acha que eu fui convertido, é?
- Ocorre, patrão, que nessas igrejas só se pregam a palavra do Pai das Luzes!
- E eu não sei? Mas, e daí?... Se seus membros estão mais interressados é no dinheiro, ao qual deus eles estão de fato servindo? Me diga? Ninguém pode, ao mesmo tempo, servir a dois senhores. Além disso, o meu opositor, lá de cima, como se sabe, odeia grana. Lembra-se que ele até já afirmou que o dinheiro é raiz de todos os males? Então é ótimo para nós! Acorda, Chiquinho! Meu pessoal atualmente se passa por meu adversário, mas só de araque. Não fique pensando que eu virei cristão, que eu fiquei agora bonzinho, não. Mudei apenas de estratégia. Afinal, os tempos mudaram. Temos de acompanhar e evolução. Os métodos que vocês macumbeiros adotam, já estão manjados faz tempo. Feitiçaria, Chiquinho, é coisa fora de moda! Deixa de ser careta, meu filho!
- E quanto aos "encostos" que estão sendo expulsos nas sessões do "descarrego" dessas igrejas não são frutos ainda da feitiçaria? - quis saber o pai-de-santo.
O diabo caiu numa estrondosa gargalhada e depois, disse:
- Até você, Chiquinho?! - e explicou - Aquilo ali são encostozinhos de meia-tigela que eu envio para animar os espetáculos dos meus amigos pastores. Expulsar aqueles espíritos, é mais fácil do que tanger galinhas. De vez enquando, no entanto, eu mando um mais fortezinho para o negócio não cair na banalidade. Mas é só isso. Não é àtoa que essas sessões fazem o grande sucesso dessas igrejas.
Depois, encarando o Chiquinho com um sorriso, disse-lhe:
- Fique tranqüilo. O diabo também sabe conservar as amizades. Você vai sair dessa. Vou encaminhá-lo a um dos meus amigos pastores e ele lhe dará algumas instruções, preparando-o para abrir sua própria igreja. Agora, vou lhe aconselhar uma coisa: procure ser sincero com ele. Odiamos este expediente mas, para ganhar inicialmente a sua confiança, isso se fará necessário. Certo?
- Certo! - respondeu meio desanimado o pai-de-santo.
- Olhe, não estou gostando nada desta sua cara! Ainda está com alguma dúvida?
- Sim, patrão. Terei que, para ser pastor, decorar a Bíblia, aquele livro grossão?
- Mas é claro!
- Aí o "fumo entrou", patrão... Tô fora! - falou completamente abatido.
- Seu besta, não se preocupe! - animou-lhe o Demo - Vai ser mole! Vou lhe dar uma memória capaz de gravar em poucos dias este livro de cabo a rabo!
E foi assim que ele veio parar ali, naquela igreja. Só que as coisas não estavam saindo nada como o previsto. Ele estava sendo muito ingênuo e causando toda aquela atrapalhada, tanto que o Pr. Eduardo, visivelmente irritado e decepcionado, foi obrigado a declarar ao público:
- Irmãos, como estamos vendo, este homem ainda não foi, como julgávamos, totalmente liberto. Continua possuído por um espírito malígno. Temos que expulsá-lo dele, agora!
Aí Chiquinho do Ogunjá, prosseguindo com sua estupidez, o interpelou:
- Resolveu mudar de opinião, foi? - e advertiu - Meu patrão, seu amigo, não vai gostar de nada disso! Você vai se arrepender!
- Eu não tenho medo de suas ameaças, demônio!... Está "amarrado"! - respondeu com ênfase o pregador - Você está querendo é destruir a nossa igreja, mas isso não vai conseguir porque você vai sair daqui é agora!
E colocando uma das mãos sobre a cabeça do pai-de-santo, bradou:
- Em nome do Senhor, eu te ordeno espírito diabólico: sai deste infeliz, JÁ!
- Sair?! Ha, ha, ha!... - debochou o pai-de-santo - Só se for com a presença do meu patrão!
De repente, espalhou-se um forte odor de enxofre por todo aquele ambiente e aconteceu o que ninguém jamais esperava: o pastor Eduardo incorporou o Exu e começou a falar manifestado:
- Você queria a minha presença, pois já cheguei. Ô Chiquinho, eu mandei você vir aqui foi pra me desmoralizar, foi?
- Não, patrão - respondeu o babalorixá ao reconhecer a voz da entidade - pelo contrário: eu só estou a lhe defender. A minha fidelidade ao Sr. é permanente, o Sr. sabe disso!
- Mas precisava você revelar a nossa relação, seu abestalhado?
- Acontece que eu fui inquirido, e o Sr. ( lembra-se?) não me orientou para eu fosse sincero com este pastor?
- Eita, sujeitinho idiota! Mas isso não era para ser publicamente. Agora foi que o "fumo entrou", Chiquinho! - disse o espírito através do pregador com as mãos na cabeça - Tem razão você ter ficado nessa penúria! Depois que ficou velho, ficou idiota! Só faz tudo errado! Virou a igreja de cabeça pra baixo... mas já vi que este negócio de ser sincero, também não dá mesmo certo, não! Estou até envergonhado!
- Perdão, patrão! E a idéia de eu estar aqui, também foi sua - quis ainda justificar-se o feiticeiro. - Devo dizer que igualmente errei - concordou o Capeta - Não fui capaz de prever o quanto você ficara idiota! Agora este pastor, cujo corpo estou a utilizar, não fica atrás de você, não! Que sujeito mais inexperiente! Por isso entrei no corpo dele para causar-lhe este vexame! Vocês se merecem! Estou falando alto pra todo mundo saber. O meu objetivo antes era ajudar aos dois, ao mesmo tempo, já que também ele havia solicitado o meu apoio para aumentar a receita desta igreja. Isso aconteceria, naturalmente, com a sua presença aqui, Chiquinho, mas ambos foram uns tremendos patetas!
Gente: Todo mundo ouviu aquilo e foi um escândalo, um tumulto danado dentro da igreja. Nunca se imaginaria uma coisa daquela! O pessoal todo gritando, chorando, clamando por Deus; os obreiros todos envergonhados... a igreja virou um inferno! Enquanto isso, pela porta dos fundos, o pastor desaparecia e Chiquinho do Ogunjá, de igual modo, caía fora que ele não era besta. Foi demais!
Entretanto, passado algum tempo, em torno de uns nove meses, o que aconteceu é ainda de se espantar. Pois não é que Pai Chiquinho do Ogunjá conseguiu tornar-se mesmo pastor? E fundar a sua própria igreja? Desta vez, em outro local, finalmente as coisas deram certas. E como deram! ALELUIA! Seu templo está sempre lotado. Denominou a instituição de "IGREJA UNIVERSAL DO REINO DIVINO". Que bonito, não? E para lá levou o pastor Eduardo que se encontrava desempregado. Ambos, juntos estão fazendo agora o maior sucesso! E, naturalmente, faturando bem. Até já fazem planos para expandir o empreendimento e concorrer em pé de igualdade com as grandes. Esta semana agora, o pastor Chiquinho deverá viajar ao exterior com este propósito. O Exu, inclusive, já lhe deu para isso algumas instruções como o de não levar dólares escondidos principalmente dentro da cueca ou da Bíblia. Com certeza, está preparado para obter êxito também nessa nova jornada. Olha, não sei não... mas a Igreja Internacional da Graça, a Renascer, a Universal, que se cuidem!