R E M I N I S C Ê N C I  A  S

As estórias a serem contadas não são frutos da imaginação e sim vividas pelo autor quando criança, que ficaram na sua memória e podem servir de aprendizado histórico para os que vivem nos dias de hoje.

Como simples impacto, quase todas as cenas são passadas no interior, no meio rural, em que havia um lado opulento e outro extremamente humilde, mas produtivo. Saiamos da cidade para passar as férias nessa localidade e, não havia ninguém da família, que quisesse ficar na propriedade faustosa, toda a preferência recaia na choupana de sapê, com piso de terra batida.

Primeiro vinha à sede da fazenda, estilo colonial clássico, assoalho de tábua corrida, dois andares mais o porão, uma enorme varanda, que circundava quase toda a propriedade. Ao lado esquerdo um galpão todo fechado ficava instalado o maquinário destinado à seleção e embalagem das laranjas destinadas à exportação. Distante, cerca de 10 Km. lá estava à casa de tijolo rude de barro do irmão mais moço de Tia Laura, a fazendeira.

A alegria era geral da família que saia da cidade para roça; primeiro a ida na “Maria-Fumaça”, que desenvolvia no máximo uns 20 km. por hora; depois a fuligem que soltava a chaminé da locomotiva, tornando totalmente imprestável a roupa que cada um vestia; a chegada na estação era motivo de alegria geral, porque lá estava o “carro de bois”, com seis animais, esperando os visitantes; o transporte ia no máximo a 5 Km. por hora e o ringir das rodas, a princípio inervava, depois de acostumado, afligia; chegara o momento interessante atravessar um pequeno riacho, que atolava os “calhambeques” ou “ fordes bigodes”, que dali só saiam puxados por uma “junta” de bois. A chegança no casebre de taipa, de tio Luiz, era motivo de festa. Logo na chega, corríamos para o pomar, a quantidade de laranjas “seleta” vistas nos pés espantavam e as tangerinas tão maduras, tonteavam, não sabíamos como escolher. Surgia logo o grito de guerra, retira quantas quiserem, mas cortando os galhinhos e não puxe a fruta. Era simples a razão, pois assim os pés já estavam podados. O almoço está pronto, não chupa muita, senão não se alimentam direito.
Interessante é saber-se se já dormiram na esteira de palha, coberta com lençol feito de saco de farinha, alvo, branquinho que os olhos ficavam ardentes. As esteiras distendidas no chão de terra batida ou de tijolos refratários, davam uma sensação diferente a quem sempre dormia em suas camas nos colchões de crina ou penas de ganso.
O café da manhã diferenciava do costumeiro, o grão já seco e torrado ia para o pilão, a fim de ser transformado em pó. O leite era ordenhado às 5 horas da madrugada. Fomos ver umas três vezes ser retirado das tetas das vaquinhas, que pareciam dóceis, “mas não eram, tinham as patas amarradas com uma cordinha”. A nata espessa do leite, servido no café, aproveitava-se para ser feito o creme. Acompanhava bolinho de fubá, aipim, batata doce cozidos, biju, milho assado e bolo de fubá. Não havia pão, somente aos sábados, até terminar o que comprara no armazém do largo, próximo à estação do trem.
As novidades começavam a surgir, primeiro foi à colheita das laranjas, toda a família participava e mais dois trabalhadores contratados. A produção chegava de 150 a 200 caixas e 100 de tangerinas.
Quase todos os dias o prato principal era galinha com diferentes verduras, porco, cabrito e galinha d’Angola, cuja carne escura não apetecia aos forasteiros, que também não gostavam de ver mata-las, pois as mães presas nos galinheiros lastimavam de dar dó. Não havia com facilidade carne de boi, comprada também no largo em determinado dia da semana. Difíceis serem feitos bifes, geralmente à carne era servida cozida ou assada, com verduras, porque não havia como armazena-la pela ausência de geladeira. Peixe só quando alguém ia ao rio pescar e pequenininhos, chamados “cará”,outros pratos comuns era a carne-seca e lingüiça de porco.
Um episódio disputado e bem guardado, quando os porcos eram abatidos, consistia nas tripas dos animais, que após serem bem lavadas, muitas vezes com o uso de esfregão feito de bambu e palha de milho, ficavam ao sol para secarem, de grande serventia, cheios de carne do próprio porco, toucinho, temperado com pimenta e ervas, constituíam a lingüiça, colocada num varal sobre o fogão à lenha, daí a denominação de fumeira, resultante da fumaça que dele desprendia. Esse preparo levava cerca de 10 dias, causando ansiedade aos visitantes.
Depois de um almoço, Rozenda, cabocla, “durona”, mulher de tio Luiz, português, o mais moço da família, nos passávamos um cortado com ela, anunciou, não chupem frutas, porque fiz uma sobremesa especial, doce em caldas de figo. Pensei, olhei para um lado olhei para outro, apenas minha mãe, deu um sorriso “maroto”, vi figueira no pomar, mas não tinha frutas, apenas linda folhagem. Veio à compoteira, ela disse: dá para todos sirvam com creme de leite.Achei os figos muito arredondados, na calda havia folhas, mais folhas da figueira. Estava uma delícia, todos repetiram insistentemente. Passado, já servindo o cafezinho da roça, a dona da casa falou, gostaram, para poder repetir outro dia ?O que comeram foi jiló, aproveitei por ter muito para fazer uma sobremesa diferente...

As maiores surpresas para os visitantes estavam por vir. Inegavelmente, quando informados que no dia seguinte, bem cedo, protegidos do sol, com chapéus de palha, iam à plantação de batatas desenterra-las. Ninguém sabia como nasciam os tubérculos, só conheciam nos sacos em armazéns ou quitandas. Foi uma gritaria geral de admiração, quando a enxada, com cuidado, cavou o primeiro buraco e dela saiu uma linda batata doce. Todos queriam examinar, sentir de fato se era verdadeira aquela mágica. Outra surpresa foi o insignificante chuchu, seu pé ficava numa simples cerca, da mesma forma a vagem e a ervilha.
O jardim à frente do casebre era repleto de flores, de um colorido estonteante, ali podíamos apreciar rosas, dálias, crisântemos, separadas ficavam as violetas. Quem cuidava de tudo chamava-se “Tonico”, nunca tivemos a curiosidade de perguntar seu verdadeiro nome. De atividade intensa, admirava-se como dava conta de tudo. Negociava com o administrador da fazenda a venda das laranjas e tangerinas colhidas no pomar e providenciava o transporte dos caixotes no carro de bois. Às vezes ia a cavalo lá no largo ao armazém, há 10 km de distância, adquirir sal para o gado e mercadorias que faltavam em casa, consigo iam a tropa de dois ou três “burros” que faziam o transporte.

Duas aventuras tinham nossa predileção. Inegavelmente caminhar pelo campo verdejante, uma planície que se perdia de vista, quase sem vegetação, no entanto, logo perto do casebre havia uma paineira tão alta que se distinguia no lugar. Se a paineira chamava atenção, num galho do topo um canarinho da terra sempre lá estava. A intrepidez de garoto, de pouco mais de 9 anos, pensou em caçá-lo. Preparou uma atiradeira, de forquilha de arvore com elásticos nas extremidades e atirava pedra no pequenino pássaro, sem qualquer êxito de acertar. Ele nem se mexia. Dias e dias ficou naquela tentativa. Em determinado momento, raciocinou, porque vou assim proceder, ele está livre na natureza, a pedra atingindo irá feri-lo ou mata-lo, não ficarei com ele, incontinenti jogou fora a arma artesanal. Para quem não conhecia, o excremento do gado que vivia solto na campina, tornava admiração, uma placa redonda já seca pelo sol. Andando, andando, chegávamos ao galpão de seleção das laranjas que se destinavam ao estrangeiro. Elas eram lavadas, escovadas e selecionadas pelo tamanho. Caminhavam na esteira recoberta de um protetor e com diferentes aberturas arredondadas, onde caiam pelas suas dimensões. A seguir passavam por um invólucro de papel de seda, onde se lia: Orange do BREZIL= Fazenda Sta. Izabel. Aquilo, ingênuo, não nos parecia certo, iriam par fora do país com dizeres errados, teria sido escrito por algum roceiro ou mesmo tia Laura, de origem portuguesa, se era laranja, por que “orange” e o nome da nossa terra, quando aprendemos rudimentos de geografia, era BRASIL e não “BREZIL”. De fato, as frutas selecionadas e embaladas nas folhas de papel de seda causavam invejas e patriotismo. Perdíamos ali mais de uma hora, até que pensávamos na volta, o horário do almoço.
Mesmo que tia Laura nos chamasse para com ela almoçar, não aceitávamos. A mesa de jacarandá rústico para 34 pessoas, tinha ao redor, igual número de cadeiras de couro cru. Ela ali fazia as refeições sozinha, acompanhada apenas da governanta, com alcunha de Mulata, que parecia não gostar de crianças
Ao entrarmos na porta de acesso do galpão embalagem, nos deparamos com uma cena dantesca, uma cobra, não muito grande, entalada com um filhote de gato, pela metade com a parte traseira para fora, sem poder lhe devorar. Atravessei sem medo, ela nada poderia fazer. Falei com o administrador, para surpresa nossa apanhou uma pá e foi até lá. Aí intervimos, o que vai fazer, matar os dois, ficamos atônitos, mas não tinha outra solução...
Gostávamos de ali ficar por alguns minutos, a corrida das laranjas pela esteira forrada de camurça e cair na abertura certa, do tamanho de cada uma despertava a curiosidade, depois a embalagem aperfeiçoava a apresentação.
Dali, retornava correndo, chegando ofegantes, para a hora do almoço, e sempre a mesma recomendação: “Vá lavar as mãos”. O banheiro e o tanque ficavam do lado de fora da choupana, o que constituía problemas pelas madrugadas, e quase sempre se ouvia aquela resposta fatal: tem gente! O bagaço das frutas faz um efeito violento.

Na fazenda havia uma fonte de água mineral não explorada economicamente, ficava localizada distante, cerca de 40 km. ninguém ia lá. Tia Laura, mandava vir em lombo de burros, 2 vezes por semana certa quantidade do líquido e distribuía para todos. Certa vez, anos mais tardes na Revolução de 32, houve uma convocação geral, e as milícias do Exército vinha arrebanhando toda a rapaziada, que foi se esconder lá na fonte da água mineral, cerca de 350 parentes. Levaram todo o suprimento necessário. Passados uns dez dias eu fui lá com Tonico, que por ter 17 anos ainda não servia, a maior dificuldade é que não tinham abrigo, estavam localizados em baixo dos pés das árvores frondosas, enfrentando as intempéries da natureza; à noite o frio tão intenso, que muitos retornaram.

O retorno, após 4 semanas, foi doloroso, a choradeira fora geral, dos que ficavam, de casa, e os que partiam. Entramos no carro de bois umas 3 horas antes da partida do trem, com um carregamento imenso de sacos de laranjas, tangerinas, leitoas, cabritos, galinhas, todos os legumes, um saco de milho e muitas plantas de jardim.
Lembramos bem, chorava tanto, que minha mãe começou a se preocupar, a justificativa que todos diziam era a liberdade que desfrutava, o dia todo de pé no chão, sem sapatos e só lavava os pés quando tomava banho e voltava a lhes colocar no chão e a noite antes de dormir. Essa seria a principal razão, não, a tristeza residia no retorno à escola.

ERAMOS FELIZES E NÃO SABIAMOS !
smello
Enviado por smello em 16/06/2008
Reeditado em 15/10/2009
Código do texto: T1037209
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