Não era mais um domingo
Era um domingo, mais um para muitos, mas para Soraia e Miguel, era mais um.
Miguel tinha cinco anos naquela época, morava apenas com a mãe numa casa com quarto e banheiro cobertos com telha. Soraia - sua mãe - trabalhava doze horas ao dia, de semana a semana, sem folgas, o que ganhava, mal dava para pagar as contas e comprar alimentos.
Naquele domingo griz, sua mãe saíra mais cedo do serviço, pegou Miguel na vizinha que o olhava e levou-o para casa. Enquanto a mãe tomava banho , Miguel brincava no quintal com sua espada, sorria com a inocência igual ao do pai que pariu o mundo. Soraia foi preparar o jantar, nada de diferente, arroz, feijão e ovos fritos; este era o almoço especial deles, comiam felizes, davam risadas da situação, um contava para o outro sobre o seu dia para passar o tempo, firmando uma relação mais do que mãe e filho, mas de amigos.
Não tinham televisão e nem rádio, para se destraírem brincavam de mímica e rima até o anoitecer. Era assim o domingo dos dois, Miguel adorava aqueles momentos, pois eram os únicos que passava mais tempo com sua mãe.
E, antes de dormir, Miguel dizia à sua mãe que a amava e que ela era a melhor mãe do mundo; Soraia dava-lhe um sorriso contraído e um olhar ofuscado pelo cansaço de viver. Quando seu filho dormia, chorava lágrimas de sangue, seu interior gritava desesperadamente por socorro, Deus era o seu ouvinte de todas as noites, mas um dia ela parou de o incomodar - assim ela pensava, que o incomodava - e guardava para si todo rancor.
Não tinham parentes próximos, amigos? Só os de boca. Mas arrastavam o destino assim mesmo e conseguiam sobreviver.
Durante a semana Miguel ficava em tempo integral na creche, lá fazia o seu desejum e almoçava, Soraia comia no trabalho e, quando ela não tinha mais dinheiro para comprar alimento, comiam pipoca e tomavam água à noite, no jantar; esta era muitas vezes as suas refeições, pipoca com água. Mesmo assim mantiveram-se firmes na sobrevivência, lutavam contra a fome e contra a morte, nem parecia ser tão jovem aquele menino, que desde cedo teve que aprender as realidades mundanas que o cercava.
Foram três páscoas, três aniversários, três natais e três finais de ano nesta luta, até que Soraia não tinha mais forças para lutar, via seu filho alegre pelo nada e decrescendo a cada dia e, para contemplar sua tão incrível história, perdeu o emprego, o seu pilar de sustentação.
Dali a dois meses não conseguiu nada, Miguel teve que sair da creche e a ordem de despejo já chegara à sua porta.
Era um domingo, mais um para muitos, mas para Soraia e Miguel não era mais um, Miguel não brincara naquele dia ensolarado, sua mãe preparou o arroz, o feijão e os ovos; uma novidade, tomariam suco. Com suas últimas moedas, Soraia comprou um suco e um veneno que colocara dentro da bebida.
Sorriam enquanto degustavam o sabor da morte, o sono veio para poupar-lhes de mais dor. Dormiram e morreram abraçados, Soraia com uma lágrima e Miguel com o sorriso inocente igual ao do pai que pariu o mundo.