Ciúme noir

Olhei para minha ferida em primeira pessoa e sangrava uma melodia espessa, sangrada de um sax tenor. Minha dor a senti estampada num cartaz noir, grudado às portas de um cinema no centro da metrópole, cidade que só era real dentro dos fragmentos de meus miolos, espalhados no palco onde um teatro de ilusões insistia em fracassar insistindo em peças fracassadas. Eu morreria, não fosse o beijo concedido gentilmente por Ingrid Bergman, eu não era um belo mas jazz ia adormecido pela iminência da morte em interlúdio. Beijo beijado na segunda pessoa do singular. Motivo da minha quase morte? O bom e velho ciúme daquele canalha possessivo do Grant...

Amor? Só funciona no singular e para a pessoa que é em primeiro lugar. Por isso agradeci minha vida à Ingrid e fui-me embora. Assim o fazem os que reconhecem a derrota. Meia garrafa de cachaça depois e fui recolhendo minhas razões misturadas às ilusões e acabei por me acostumar aos fracassos. Mas tenho de confessar. Confesso minha dor, dor que dói cada vez que passeio pelos anos de 1946 e vejo no cartaz desbotado a minha salvadora de rosto colado com aquele cafajeste.

Elohim Cândido Brasil
Enviado por Elohim Cândido Brasil em 12/08/2019
Código do texto: T6718679
Classificação de conteúdo: seguro