O dia em que Elis Regina morreu
Foi no dia em que Elis Regina morreu. Ela ficou muito injuriada. Não podia compreender, no verde de seus anos, como uma pessoa que tudo tem, tudo joga fora. Idiota, pensava. Teve raiva, muita raiva. Não achou graça no resto do dia embora estivesse de férias, na Praia. Quantas eram? Não se lembra, eram muitas, todas jovens, esperançosas. Casa alugada em Rio das Ostras, só mulheres. Bem, o caso é que duas delas começaram a brigar. Briga feia, com impropérios de parte a parte. O Grupo acabou se dividindo, para impedir que coisa pior acontecesse. Cada grupo tomava conta de uma das brigonas. Havia ameaças, uma dizia que acabaria com a raça da outra. À noite, escondiam as facas debaixo dos travesseiros: a ruiva disse que mataria a loura. Arrastava-se uma cama para perto da porta de cada quarto, impedindo a entrada ou a saída. Na noite desse dia, o dia em que Elis morreu, eles estavam próximos, os dois grupos. Então ela disse a quem estava com ela. Vamos embora antes que a confusão comece. Caminharam a beira mar no deserto escuro da noite. Caladas, não havia o que falar. Foi então que eles vieram. Os demônios. Um bando, cavalgando suas motos enlouquecidas. E começaram a persegui-las. Foram se achegando barulhentamente e forçando-as para o lado do mar. Cada vez mais. Aí, se afastavam. Pareciam que iam embora, elas se recompunham e eles voltavam. Não havia para onde fugir. Não havia como voltar. De um lado o mar, ondas bravias naquele dia. De outro, casas fechadas, ouvidos surdos. Portões fechados. Bem que tentaram, esmurraram portas e portões, se arranharam em muros rústicos. E eles iam e vinham. E elas gritavam e choravam. Chamavam pelas mães e pelos santos. Até que São Jorge apareceu para enfrentar os dragões. Uma porta se abriu e uma mulher solitária e corajosa disse: entrem, entrem. E elas ficaram ali, por muito tempo, o rádio ligado, a morta cantando. São Jorge ouvindo passos conhecidos e abrindo uma fresta da janela pediu ajuda. E elas foram escoltadas até ao romântico bangalô por gente do lugar. Passaram a noite sem dormir. No outro dia parte delas desistiu das férias e foi embora. E ela nunca mais pode ouvir Elis cantar sem se lembrar. Daquele dia. Daquela noite em que foi perseguida por um bando de demônios montados em dragões de duas rodas.