MAGALINHA E O OVO QUADRADO
Lá na fazenda vizinha, o galo esquentava a goela para a cantoria matutina, cumprindo o ritual de anunciar que a noite em breve, mas sem muita pressa, recolheria os restos de penumbra e que o dia estava ávido para, ao rendê-la na faina do manuseio do relógio do tempo, tostar-se ao sol, na rede invisível da claridade.
O galo garnizé, garboso, fazia questão de acordar antes que todos os outros para ser o primeiro a cantar. Não era à toa que ganhara prêmios de melhor galo das redondezas. E empinava-se todo no seu poleiro, ajeitando a vasta crista, de um vermelho vivo, alisando as penas alvas e balançando a vasta cauda furta-cor. Batia as asas com tanto vigor que um redemoinho de pó sobrevoa todo o terreiro, ofuscando a vista das galinhas, dos pintos e dos galos menores. Alguns deixavam escapar: “Que droga de baixinho metido!”
Já na fazenda do Meio, o galo carijó não estava nem um pouco preocupado com o seu trabalho. Queria é ficar o máximo de tempo possível aninhado à galinha da sua vida. O galão não se incomodava com a fama de acomodado, mas garantia que não era: “Quando precisa, eu canto”, resumia.
Ficou ali no ninho o quanto pôde, até que, já sentindo o sopro quente do dia lamber suas penas, não viu outra coisa a fazer que não cumprir com a sua obrigação. Chacoalhou o corpo, esticou as pernas, molhou a goela no bebedouro e mandou um cocoricó tão intenso que a comunidade até estranhou: “O que deu nele?”, perguntou um outro galo; “É a Magalinha”, respondeu a franga. De fato, Magalinha já lhe havia alertado: “Não passa de amanhã...”. Por isso, estava feliz.
Magalinha ainda dormia. Era a galinha mais vistosa do terreiro, xodó da dona da fazenda, que até botou um laço amarelo em sua cabeça redonda, adornada com olhos grandes como azeitonas pretas e bochechas cheias, que lhe davam um ar de eterna felicidade. Grandes pintas brancas salpicavam a negritude de suas penas. Seu corpo, até então torneado, apresentava uma aparência um tanto quanto fora dos padrões para uma gestante, uma vez que sentia algo pontiagudo quando alisava a barriga, que até mesmo parecia quadrada.
Saiu para ciscar no terreiro, preparando-se para os afazeres corriqueiros de galinha. Logo ao sair do galinheiro, estranhou tudo lá fora: estavam todos quadrados. O terreiro estava quadriculado de marrom e vermelho, as galinhas de bolinhas pareciam dados de jogar, os pintinhos, como caixinhas de surpresa, brincavam de disputar quem esticava mais alto o pescoço de mola, os galinhos eras caixas com bico, crista e cauda. Quando olhou para o seu próprio corpo.... “aahhhhh!” Acordou de sobressalto, transpirando. Olhou para o lado, Carijó já tinha levantado. Pé ante pé, foi espiar lá fora. “Ufa. Tudo normal”, tranquilizou-se. “Foi só um pesadelo.”
Refeita do susto e arrumada o quanto possível, Magalinha foi ao cocho de tronco de árvore cavado, ciscar a nova e deliciosa ração para saciar a sua insaciável fome. Há tempo preferia comer ali que ciscar no terreiro. Ficava meio de lado, porque lhe era dolorido encostar a barriga pontiaguda no recipiente. Ao menos, era melhor que roçá-la no chão.
Para complicar mais, os pintinhos novos, nascidos de semana, pulavam no seu pescoço sem parar, querendo saber dos seus novos amigos: “Dona Maga, Dona Maga, quando nascerão os seus pintinhos? Temos muitas brincadeiras para ensinar para eles. Quando, heim, heim?”, e Magalinha respondia, com a paciência e a doçura que seu estado permitia: “Logo, logo, meus amores...”
Magalinha, excepcionalmente naquele dia, deixou de cumprir com os afazeres normais de uma galinha. Recolheu-se ao ninho, fatigada só pelo esforço de comer, para esperar o grande momento. Já botara muitos ovos na vida, mas aqueles tinham um quê de especiais. Não sabia explicar. O marido também sentia algo diferente. De repente, era o formato da barriga, o tamanho da barriga, a fome insaciável. Alguma coisa estava diferente.
Então, vieram os sinais do parto: o coração acelerado, a barriga contraída, a dor cruel. “Chamem o Carijó!”, gritou com o fôlego que lhe restava. E pôs-se na posição da desova. As comadres se aproximaram para auxiliá-la e dar conforto.
Carijó chegou ligeiro, empurrando as galinhas que lhe barravam a frente. Queria presenciar o acontecimento que esperara ansiosamente, mesmo sem saber o porquê de tanta aflição. Já assistira a vários partos de Maga, mas pressentia que esse guardava algum segredo. Ficou no canto, segurando a asa trêmula de sua amada.
Magalinha fazia força, mas nada saia. Sentia uma dor dilacerante, como se algum espinho lhe escorregasse goela abaixo, e suava frio, como se debaixo de sol e neve simultaneamente. O tempo passava e afligia a todos. Carijó já não tinha mais unhas para roer, sua crista murchara, sentia as dores da amada. As comadres deram-se as mãos para rezar, pedindo ajuda para São Galinho dos Carijós.
Quando Magalinha achou que não aguentaria mais nem um arfar, aconteceu. Como que por milagre, escorregou cloaca abaixo o ovo mais surreal já visto, mais louco que os famosos “ovo de rabo” chinês, ovo gigante estadunidense, ovo batata croata, ovo cilíndrico de mestre-cuca. Era um ovo quadrado. Foi um “oohhhhh!” geral. Quando Carijó foi vistoriá-lo, estava quente; pior, cozido. No calor do forno em que se transformara o ventre de Magalinha.
Na lixeira, detrás do mourão da porteira, balouçavam ao vento, livres do conteúdo alimentício, alguns pacotes da ração importada “Salvador Dalí”.