Pernas pro ar
Caindo a noitinha, já jantados, rezados e ainda pra cama não preparados - dentinhos por serem escovados -, santinhos, ou capetinhas, ficávamos naquela zanza em torno de mamãe, de papai, ou de alguma tia de companhia, ouvindo rádio, refolheando alguma revista ou livro já surrado de tanto manuseio. E de repente, já enfarados de ouvir casos, ou mesmo a Voz do Brasil, vinha a idéia de desenhar.
E a farra ganhava novo alento, na procura de tocos de lápis, de papel, que geralmente era o de embrulhar pão, cinzento, sem expressão, mas enfim o que tava mais à mão... E a mesa preta, larga, da copa, se convertia em coletiva prancheta.
Meu desenho inaugural, por mim alardeado, antes de rabiscado, foi um porquinho. Não sei o que determinou aquela súbita porcina predileção, pois podia bem ser um gatinho, um cachorrinho, ou um pintinho, mas me fixei foi no suíno. Talvez influência da vizinha frontal, Dona Nita, mãe de uma dúzia de filhos, mulher agitada, faladeira e fazedeira, que criava porcos no quintal, espalhando fedor bem mais além do arredor.
Tendo conseguido o lápis, saí à cata do papel de pão, que já havia sido fatiado de mão em mão, dali, me vali mesmo foi da margem de algum livro para imprimir meu passo artístico inicial. Do resultado, da forma não me lembro, senão do testemunho de papai, a viva voz, atroz: esse seu porquinho só tem três pernas, e todas elas para cima.