Bullying sem café?

Andavam mesmo bicudos aqueles tempos. A mudança do povoado pra cidade, a meninada crescendo e comendo ...como se tivesse vindo do Ciará... e a miséria do ordenado que não subia, mesmo que recebido todo santo mês.

E tava duro. Com o pagamento do empréstimo para saldar a casa, ainda que em condições de irmãs pra irmão, o que sobrava ia pras panelas. Medindo a água e o fubá, dava para levar. Justo. Depois havia de passar o susto, ainda que a custo.

Um dos sinais primeiros da degeneração do patrimônio foi quando me vi sem meus sapatos para ir à escola. Não me recorda agora como fazia para ir à missa, a obrigação dominical. Mas para ir à escola, naquele ano da graça de 1959, a certeza que tenho é que depois do almoço, sem alvoroço, botava o uniforme, que se compunha da camisa branca, com o bordado JV - por Professor José Valadares, e na linguagem dos meninos de outras escolas, José Viado, no bolso, a calça azul curta, ambos até limpinhas e passadinhas e me sentava numa cadeira para banhar os pés, empoeirados das algazarras matinais. Mas voltava a botá-los de novo no chão rumo à escola que ficava a uma descida e a uma longa subida, com 3 ou 4 quebradas.

Bom pedaço. Se estivesse muito quente o paralelepípedo queimava a sola dos pés. Daí eu gostar mais da terra mesmo. Já na escola, não carecia olhar pros pés dos com-sapatos. E me coube sentar junto como Raimundo, um menino grandão, compridão, afro pela metade, de boa índole a quem os demais colegas, por gozação, chamavam de Beiçudo. Fosse moça, teria um futuro na indústria dos cosméticos.

Eu não entrava na brincadeira dos meninos. Achava um desrespeito chamar a pessoa por um apelido depreciativo. E me penalizava pelo Raimundo, órfão de mãe, cujo pai trabalhava na prefeitura e mesmo dirigindo um caminhão devia ganhar menos que o meu, que dirigia teares em meio ao algodão. E numa solidarizaçãotácita, fazia-me o Raimundo o favor de ser também um sem-sola, e já há mais tempo do que eu.

Mas um dia, entretanto, vem nos visitar uma tia, a Conceição que do filho que rapidamente crescia, nos trouxe um presentão, a mim e ao meu irmão menor Beu: um par de sapatos e outro de botininhas, que nos serviram feito Cinderelas da vida real. Uma boa escovada, o engraxamento e estavam perfeitos. O meu sapato até brilhava mais que meus olhos.

Pisante nos pés, fui pra aula, me sentindo um dez. Mal me cabia de satisfação, pouco me somando com a lição. Exibi-os, refesteloso, ao Raimundo, virando e revirando os pés. E ainda complementei: tá vendo, que beleza de sapatos, engraxadinhos, brilhando. E você aí com essas pranchas no chão... O que ouvi foi um ronronar de vou te pegar lá fora... Tremi nas bases. Mas ele não consumou a ameaça. Minha petulância não lhe havia pegado.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 26/01/2015
Reeditado em 26/01/2015
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