LUPE
Joca e a família viviam bem com os rendimentos provindos de uma fabriqueta de bijouterias naquela cidade de porte médio, no interior do Ceará. Estava indo tudo muito bem até a inauguração da indústria “bijoulev”. As vendas caíram, os créditos diminuíram, os débitos aumentaram... E resolveram de comum acordo – ele e a mulher – venderem a loja e a fábrica, a residência, e recomeçarem a vida em outro lugar. Ficou combinado que Lene comunicaria a Tico e Nina.
Lupe já fazia parte da família há cinco anos. Foi deixado dentro de uma caixa no portão da casa do Joca. Acolhido e bem cuidado, “soube agradecer” todas as gentilezas de que era possuidor. Instinto aguçado, ainda filhote condicionou algumas ordens do chefe da casa. Ao chegar do trabalho, Lupe o esperava ao portão balançando a cauda, numa demonstração de viva alegria. Joca parava e ele rapidamente com uma das patas dianteiras abria o ferrolho e puxava o portão. Joca entrava, fechava, e sentava-se na espreguiçadeira. Era o sinal. Lup trazia as chinelas do dono e retornava com os sapatos na boca.
- Lupe, sentado! Obedecia imediatamente.
- Lupe, em pé! A ordem era rigorosamente cumprida.
- Lupe... Deita e fecha os olhos pra dormir! Em segundos ele estava como que roncando.
Todos o queriam muito bem. Tico e Nina então, nem se fala.
As propostas chegavam de modo acelerado. Era preciso decidir o mais rápido possível. Os filhos haviam concordado, com uma condição: que Lupe fosse também.
Propostas meticulosamente analisadas, a que mais convinha no momento era aquela que propunha a troca por um apartamento na Cidade Grande, e uma parte em dinheiro. Decisão tomada, chegara a hora de arregaçar as mangas para preparar a mudança.
No dia seguinte, cedinho, Joca e Lene estavam no cartório para oficializar o negócio, juntamente com o futuro proprietário. Documento de compra e venda assinado e reconhecidas as firmas, Joca pôs finalmente a mão no dinheiro. Dentro de trinta dias, a fábrica, a loja e a residência deveriam ser entregues sob pena de uma pesada multa contratual.
Lupe não poderia segui-los. Em apartamento não se pode criar cachorros. Ao saber disso, Lico e Nina eram um pranto só. O que fazer então? Alguém cuidaria de Lupe. Esse alguém no momento exato iria aparecer. Joca proferia estas palavras com tanta certeza que o consolo se derramou no coração dos filhos.
Eram 5 horas da manhã quando o caminhão bau deixou a cidade. Oitocentos quilômetros de viagem. Joca e a família seguiriam após o café.
Lupe estava inquieto. A casa estava totalmente vazia. ele nunca presenciara durante esses cinco anos de permanência ali, algo tão estranho. Latia, choramingava, lambia (beijava) cada um...E as lágrimas de saudade despencava dos olhos de todos. Infelizmente tinha de ser assim.
Casa fechada e Lupe “despejado”, entregaram a chave ao vizinho, tomaram o carro em direção a estrada. Lupe corria desenfreadamente. Corria e latia como se estivesse dizendo: “Me levem. Não me deixem aqui sozinho. Esperem por mim. Eu quero ir também.” Ninguém ousava olhar para trás. Após uns dois quilômetros e com a língua de fora, arfante e olhar profundamente triste, Lupe sentou-se à beira da estrada, vendo o carro perder-se numa curva do caminho.
Ali mesmo Lupe adormeceu. Com o sol a pino ele voltou até a cidade para viver uma vida de cachorro. Os depósitos de lixo eram virados e o lixão assaltado em busca de alimento. A fome era imensa. Restos de alimentos fétidos e apodrecidos faziam parte do seu cardápio diário. Para matar a sede utilizava poças de água suja e contaminada. Sem carinho, sem afeto, desprovido da ternura de Lico e Nina, ausente dos chamegos de Joca e Lene, começou a definhar gradativamente. Estava chegando ao fim.
Após um mês inteiro vagueando pelas ruas, atacado por outros cachorros e sem capacidade de reação pela debilidade intensa, encontrava-se cheio de ferimentos, de onde provinham dores que eram expressas por gemidos chorosos e intermináveis.
Num desses dias, perambulando raquítico e esquelético pelas ruas da cidade, ouviu uma voz que ouvira uma vez somente.
- Lupe! Lupe!
Olhou com a cabeça arqueada. Reconhecera o timbre da voz, mas não o homem.
- Lupe! Lupe!
E arremessou uma bala de hortelã. De maneira voraz ele mastigou e engoliu. Outra bala, mais outra...
Era Anacleto. Chamavam-no Cleto, por ser um nome mais curto e carinhoso. Comerciário por muitos anos, infelizmente durante um assalto tomou um tiro na coluna vertebral e ficou paraplégico. A fim de aumentar os rendimentos de uma parca aposentadoria, adaptou a sua cadeira de rodas à semelhança de uma vendinha ambulante. Coberta com um guarda-sol de praia, conduzia uma caixa de madeira com vários compartimentos quadrados onde colocava balas, chocolates, chicletes, pipoca, pirulitos, fichas telefônicas, complementando com pequenos brinquedos, e um isopor com garrafinhas de água. Todos os dias – com exceção de sábados e domingos – 7 horas da manhã lá estava ele num dos cruzamentos mais movimentados da cidade. Quando deparou-se com Lupe...
Movimentou a cadeira de rodas em direção à sua casa e ele o acompanhou. Cleto estava feliz. Primeiro por prestar solidariedade a um animal destinado a morrer. Segundo... Era segredo.
- Cida! Cida! Um presente para nós dois.
Quando Cida chegou ao portão não acreditou.
- Cleto o que é isso? Estás ficando doido homem? Trazer um cachorro vira-lata desse e ainda mais morre não morre? Não está vendo que ele está no fim? Esta idéia só poderia partir da cabeça de outro...
Calou-se. Abriu o portão. Cleto entrou e em seguida Lupe.
Tratou em primeiro lugar da alimentação. Depois de um banho com sabonete comum (também não estava preparado...), colocou-o próximo a um lugar aquecido. Telefonou para um amigo veterinário. Examinado, com os medicamentos prescritos e os cuidados necessários para sua recuperação rápida, Cleto ligou para a Latfarma solicitando os remédios.
Após quinze dias de tratamento intensivo, Lupe estava novo de novo. Cida agora era outra pessoa. Durante o tratamento ela tornou-se a maior responsável pela recuperação de Lupe. Cleto saía pela manhã e só voltava à notinha. Sem filhos, coube a Cida a responsabilidade em relação ao cachorro.
Cleto não acreditou quando o viu ao portão. “Estaria fazendo o quê?” Mal Cleto se aproximou, Lupe levantou-se rapidamente e puxou o ferrolho do portão – como tantas e tantas vezes fizera com Joca. Cleto deu-lhe uma bala em agradecimento, entrou na sua cadeira de rodas, e fechou o portão. Desceu e sentou-se no sofá. Não tardou e lá vem Lupe com o par de chinelos. Cleto arregalou os olhos. E ficou mais estarrecido quando Lupe tomou os sapatos e as meias na boca e levou para o lugar onde estavam os chinelos.
- Meu Deus! Meu Deus – foi a sua única exclamação...
No outro dia estava contratando um adestrador de cães para “ensiná-lo” a ideia que tivera.
- Cleto, dentro de uns vinte dias – no máximo – ele terá assimilado totalmente o que você pensou.
Treinamento em tempo integral e mostrando uma capacidade instintiva brilhante, Lupe assimilou toda a ideia. Agora era somente executar o projeto. Pagou ao Neco, agradeceu e despediram-se. Cleto ainda perguntou:
- Tudo certinho, certinho?
- Não confia no meu taco não? Comece logo amanhã. Depois me conte.
Aquela noite parecia não querer passar. Cleto estava ansioso e tenso.
- Por que não amanhece logo? Eita noitezinha comprida!...
Mal o sol mostrara os primeiros raios, Lupe devorava a sua ração especial, bebera água filtrada, “fez o serviço no lugar habitual”, e esparramou-se no jardim para o banho de sol.
Alguns momentos depois Cleto despede-se de Cida com um beijo e um até à noite. Portão já aberto, Cleto desce a pequena ladeira na “vendinha improvisada”.
- Lupe!
De um salto ele estava do lado do novo dono. Por onde passavam era causa de admiração. Após quarenta minutos de percurso chegaram ao local de costume. Quando o semáforo fechava, Cleto descia a calçada na sua “vendinha”, e entre os carros, perigosamente, oferecia os seus produtos. Quando o semáforo abria, driblando carros e motos, ele postava-se outra vez na calçada.
De hoje em diante seria diferente. Lupe exerceria esta função. Por isso Cleto havia adquirido uma pequena caixa de som amplificada e um microfone. Enquanto ele propagava os seus produtos, e as pessoas gritavam quero isso, quero aquilo... Cleto separava num pequeno caixote repartido em compartimentos (como s fosse uma colmeia), adaptava ao pescoço de Lupe (provido de focinheira) e ele se encarregava de fazer a entrega.
Os primeiros dias foram dias para chamar a atenção dos motoristas, passageiros e transeuntes. Mas uma semana depois...
- Cleto, manda dois reais de chiclete.
- Desculpe Fred! Acabou tudo.
- Como? Ainda não são nem 11 horas.
- Pois é.
E assim com a ajuda criativa e indispensável de Lupe, em menos de um ano Cleto havia mudado de casa, carro zero na garagem, investimentos que lhe rendiam um bom dinheiro... E uma empresa somente para cadeirantes como ele, que lhe pagavam apenas um pequeno percentual das vendas dos mesmos produtos que vendia antes.
E o Lupe? Ganhou uma casinha de cachorro acompanhada de um lindo presente. Uma linda cadelinha vira-lata de nome Lelé. A paixão foi à primeira vista. Lupe nem deu um pequeno espaço de tempo para Lelé. Depois de dois meses a Luparada aumentou. Cleto e Cida sorriam com a pressa dos dois. Cleto olhou para ela e disse:
- Eles é que estão certos. Nós, como não tivemos pressa...
28/02/202
ALMêdo