KIKO E KEKO

Filha de um casal de situação financeira e material difíceis, Luana nasceu após inúmeras tentativas, já que Jane apresentava um problema de saúde, onde a gravidez era praticamente impossível.

Pré-natal realizado com todas as recomendações cumpridas. É chegada a hora do parto. Beto está nervoso, e cheio de ansiedade. Beija a esposa carinhosamente e diz baixinho: “Vai com Deus. Tudo vai dar certo.” Jane segue na maca para a sala de parto. A espera é do tamanho da angústia de Beto. Anda de um lado para o outro, esfrega as mãos, olha pela janela, continua a caminhar, senta-se um segundo, levanta-se... Faz muito tempo que esta sensação de inquietude toma conta do seu coração. Finalmente a porta se abre e a enfermeira Rafaele diz: “Foi tudo bem. Regina está na sala de recuperação. Quanto à nenê é linda. Parabéns papai!”

Um suspiro de alívio e quietude alcançaram o coração de Beto. Era uma menina. Seu nome seria Luana.

No dia seguinte a simplicidade daquela casa recebia mais uma habitante. Apesar de não terem praticamente nada, aquele casal sorria, se abraçava, chorava de emoção profunda por ter o seu sonho realizado. Beto e Jane estavam mais do que felizes.

A rotina diária mudou. Após o término da licença maternidade, Jane volta ao trabalho. Beto agora faz as vezes de “faz tudo”, porque há algum tempo está desempregado. O sustento da família provém do salário mirrado de Jane. Eles nunca reclamaram.

Luana foi crescendo e a cada dia que passava expandia através do seu olhar, seus gestos, suas peripécias, a beleza viva de uma criança saudável e muito inteligente.

Certo dia de domingo (ela estava com seis anos), os pais foram surpreendidos pela sua maneira de falar:

- Papai e mamãe, não se vai hoje até a feira? Precisamos sair um pouco. Faz bem para nós.

Beto olhou disfarçadamente para a esposa, e com um risinho no canto da boca confirmou.

- Tá certo filhinha. Vamos já.

Trocaram de roupa rapidamente, tomaram o ônibus e lá estavam os três, na ”feira do tem de tudo.” Luana não se continha de admiração e alegria. Tudo era novidade.

- Papai, que variedade de coisas! Como essa feira tem de tudo mesmo!

E olhava...Olhava... Seus olhinhos mão paravam um momento sequer.

-Mamãe, vamos até o lugar dos pássaros. Gosto tanto deles. As cores, os cantos... Tudo isso me chama muito a atenção.

Chegando ao local, Luana correu logo para uma gaiola onde estavam dois filhotinho de galos da raça garnizé. Ela não se cansava de observá-los. As outras aves ficaram de lado. Ela estava cada vez mais admirada com aqueles dois filhotes. Aproximou-se do dono e perguntou:

- Quanto custa em reais estes dois filhotes de garnizé?

- Cem reais, menina.

Neste instante aparece Fábio, amigo da família, e ouviu todo o papo. Dirigiu-se para Luana e comentou:

- Puxa Luana! É muito caro. Caro demais.

Uma lágrima brotou dos seus olhinhos verdes, mas ela conteve-se.

Beto e Jane trocaram algumas palavras com Fábio, como se tivessem acertado alguma coisa. Depois despediram-se, tomaram o ônibus de volta e chegaram em casa.

Outro assunto não interessava a Luana. Aqueles filhotes não saiam de sua cabecinha de criança. Terminado o domingo, uma rede branquinha esperava o seu corpo para o descanso. Adormeceu logo. Sonhou que ganhava de presente os filhotes. De madrugadinha pulou da rede e gritando de alegria partilhou com Beto e Jane:

- Vou ganhar de presente os dois galinhos. Eu sonhei. E eu acredito nos meus sonhos. Como estou feliz!

No dia do seu aniversário, com a ajuda dos vizinhos e alguns amigos mais próximos, um bolo, a velinha e dois refrigerantes de dois litros, compunham sua festinha. Sete anos. Centenas de sonhos. Uma vida que nem começara praticamente ainda. Ao som de “parabéns pra você” acompanhado de palmas, e “que Jesus abençoe...”, apagou a vela e agilmente cortou o bolo distribuindo entre as poucas pessoas, enquanto os pais serviam o refrigerante. Depois,. Com o coração disparado, dirigiu-se para abrir os presentes.

0lhou, observando atentamente cada embalagem, e decidiu que aquela do canto seria a última. Foi abrindo. Uma boneca. Um ursinho. Um vestido azul. Um par de chinelas. Um copo plástico. Uma mobília plástica. Um estojo de maquiagem... agora faltava “aquela caixa.” Nunca vira um presente numa caixa toda furadinha. Era algo novo para ela. Beto e Jane prestavam atenção de longe. O coração de Fábio disparou. Luana rasgou o papel, rasgou a caixa, e...

- Eu sabia. Eu sabia. Eu sabia. Agora eles são meus. Chegaram para fazer parte da minha vida. Eu já tinha escolhido até os seus nomes: Kiko e Keko. Como estão diferentes! Cresceram mais um pouquinho. São lindos! São lindos!

Fábio não conseguiu segurar as lágrimas. A emoção em fazer Luana feliz com tão pouco, comoveu o seu coração. Beto e Jane não sabiam o que dizer. Luana tomou a palavra e disse em tom de agradecimento:

- Que Deus abençoe a todos! Sem vocês, papai e mamãe não poderiam ter realizado a minha festinha. Estou muito contente. Agradeço de coração pelos presentes. Os demais não fiquem com raiva não, mas o presente que eu mais gostei vocês já sabem. Queria saber quem trouxe.

Beto e Jane procuraram terra no chão. Estavam vermelhos e sem jeito. Fábio aproximou-se. Luana pulou no seu pescoço, abraçou-o, beijou-o e disse:

- Tio Fábio, eu lhe acho muito parecido com Jesus. Não é a sua fisionomia, mas o seu jeito de ser. Jesus amava as crianças. Um dia Ele falou: “Deisxai vir a mim as criancinhas, porque delas é o Reino dos Céus.” Você tio Fábio, pela intercessão do Kiko e do Keko, já está no céu.

Fábio beijou-a demoradamente. Já passava das 22h quando Beto agradecia a presença e a atenção de todos. Um a um foi deixando a saleta. A porta foi fechada. Luana tomou seus dois tesouros e improvisou um lugarzinho para dormirem e descansarem após aquela algazarra toda. Num cantinho da cozinha, dentro da mesma caixa, Kiko e Keko adormeceram profundamente.

Era aproximadamente 4 hodas da manhã quando um novo canto de vida tomou conta daquela casa simples.

- Uucucuruuuuu!

- Uucucuruuuuu!

Luana levantou-se rapidamente. Os dois já estavam traquinando pela cozinha.

- Deve ser fome – pensou.

Retirou um pouco de xerém dos passarinhos do pai e espalhou pelo chão. Em minutos o chão de terra batida estava limpinho.

- Eita comilões! Começaram pra valer, hein? Não pensem que vai ser sempre assim.

Com o passar do tempo acostumaram-se a dormir num poleiro improvisado no pequeno quintal. O limite do sono era até 4 horas da madrugada. Daí pra frente, um era o eco do outro.

- Uucucuruuuuu!

- Uucucuruuuuu!

Só se poderia distingui-los pelo timbre do cantar. Kiko cantava agudo; Keko era mais grave, enrouquecido. No mais, pareciam clones.

Luana se desmanchava de amores para com os seus garnizés. Brincava, dava banho, falava com eles, corria, e até algumas vezes dormira com eles em sua rede, um dia em que ela acordou e observou o que haviam feito... Sua rede toda suja e o mau cheiro que exalava... Aboliu esta prática.

Os dias sucediam-se. A casa vizinha foi alugada ao seu Juvenal. Alto, magro, carrancudo e zangado. Logo nos primeiros dias aprontou uma pequena confusão. Do quintal de sua casa gritava:

- Isto não é possível! Eu não posso mais nem dormir com o diabo desses galos zoadando a noi intera. Se não derem um jeito eu sei como dá.

Beto, Jane e Luana só faziam ouvir. Não respondiam nem afrontavam o velho.

Essa era a rotina diária de Juvenal. Queria uma confusão a qualquer custo.

Certa manhã, Jane recebe uma intimação para comparecer à delegacia do bairro. Ficou branca, trêmula, gaguejou, a assinatura de recebimento parecia nem ser sua. Entrou, fechou a porta, chamou Beto e leram juntos.

- Velho ordinário! Nós vivíamos aqui tão sossegados. Por causa do canto de dois garnizés, a delegacia nos aguarda. E se Luana perder Kiko e Keko como é que será?

O dia da audiência de reconciliação chegou. 15 horas os três estavam frente à delegada de polícia. O primeiro a falar foi o Juvenal.

- Doutora, isso não é possível. Sou idoso, doente, preciso dormir, e todas as noites é um inferno. Esses dois galos não param de cantar. O pior é que não tem intervalo: um canta e o outro responde imediatamente. Eu não aguento. A senhora tem que dar um jeito nisso. Eu tenho direito ao meu sossego noturno. Não aguento mais. Chegou.

Doutora Cléa olhou-o bem dentro dos olhos e argumentou:

- Senhor Juvenal. Durante quanto tempo diariamente o senhor usa estes tampões nos ouvidos?

- O dia inteiro.

- Para quê?

- Eu tenho uma doença nos dois ouvidos e o médico recomendou estes tampões como parte do tratamento.

- Tudo bem. E com eles o senhor ouve normalmente?

Juvenal cu em si. Esquecera e retirar s tampos. Agora estava sem jeito. Baixou a cabeça e respondeu:

- Não.

- Quer dizer que o senhor só ouve normalmente o canto dos galos? Responda! Eu – como autoridade – fiz uma pergunta e exijo uma resposta.

De cabeça ainda baixa falou baixinho:

- É que eu sou mesmo assim. Eu nunca fui feliz. Minha história de vida é carregada de tristezas e dores. Nunca casei, não tenho filhs e todos me rejeitam. Ninguém me compreende. A solidão me consome. Ninguém se aproxima de mim. Por isso eu não posso ver ninguém feliz. Isto me causa revolta, e a maneira de me vingar é esta. Denunciar na delegacia.

Doutora Cléa, tão experimentada na profissão, não teve como não comover-se. A expressão de misericórdia de Beto e Jane eram visíveis. Retomando a palavra, a delegada concluiu:

- Senhor Juvenal, de hoje em diante tenho certeza de que o senhor ganhou dois amigos. Aliás, cinco: Beto, Jane, Luana, Kiko e Keko. Na madrugada em que o senhor puder ouvir o canto dos galos, o seu coração se encherá de alegria; e em vez de ficar zangado, dê graças a Deus porque está podendo ouvir outra vez.

Abraçaram-se ali mesmo. Despediram-se da doutora Cléa. Agradeceram as suas palavras. Juvenal parecia o mais feliz. Quase à porta de saída ouviram a voz da delegada:

- Que família linda você ganhou, hein Juvenal?

Faltava Luana que estava no colégio e não estava sabendo do ocorrido. Apressaram os passos para chegar em tempo dela não desconfiar de nada. Juvenal despediu-se com um sorriso, pediu desculpas e convidou-os para baterem um papo à noite. Enfim, Kiko e Keko estavam para sempre livres, sem necessidade pelo menos de um “habeas corpus.”

24/02/2012

ALMacêdo

Antonio Luiz Macêdo
Enviado por Antonio Luiz Macêdo em 27/02/2012
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