ARCO-ÍRIS
À Dorina Nowil.
Numa favela da grande São Paulo, nasceu uma menininha de aparência saudável e bonita, batizada com o nome de Yasmim. Filha de uma diarista e um servente de pedreiro, que trabalham de segunda a segunda, de sol a sol, somente aos seis meses de vida, eles perceberam que ela não enxergava: havia nascido cega e assim ficou; nada foi feito para descobrir a causa de sua cegueira e se havia cura.
Yasmim passa o dia na casa da vizinha, uma senhora de setenta anos, que também cuida do seu netinho, enquanto a filha trabalha. Aos oito anos de idade, as poucas e inverídicas informações que recebe sobre o mundo vêm de Biguá, o neto da velha pajem: ele é os seus olhos.
Biguá, doze anos de idade, não quer saber de escola; fica o tempo todo empinando pipa ou nadando no córrego fétido, que atravessa a favela, com Yasmim a tiracolo. Ali rola tudo que não presta, principalmente aliciadores de menor para o tráfico de drogas. Biguá é uma das vítimas. Nessa ocasião, para sorte de Yasmim, sua mãe havia conseguido uma escola para portadores de deficiência visual indicada por uma de suas patroas. Passaria o dia na escola e, à noite, seu pai ou sua mãe lhe buscaria.
Alguns anos mais tarde, Yasmim, já alfabetizada, leitora assídua dos melhores livros em Braile - pena que existam poucos - encontra-se com Biguá em um shopping, que, envolvido no mundo das drogas, pouco se vê em lugares bem frequentados. O menino é que se aproxima dela e a chama como costumava, quando brincavam juntos nos arredores da favela:
_”Mim”!
_Biguá?... Ela fica em dúvida porque a voz do menino alterou-se devido o uso de drogas e o tipo de vida que leva.
_Tudo bem, mana? Já me esqueceu?
_Claro que não, Biguá. Sua voz que está um pouco diferente.
_E você está toda diferente; cresceu; cabelo bonito; bem vestida; bonita pra caramba.
_Obrigada! Não posso vê-lo, mas com certeza também cresceu e está se tornando um belo homem.
_Que nada, continuo o mesmo.
_Lembra quando tentava me explicar como eram as cores? Por que nunca me falou que era negro?
_Não falei?... E como sabe que sou negro?
__O seu apelido: Biguá!
_O que tem ele?
_Biguá é um pássaro negro que vive a beira de lagos e rios mergulhando para pegar os peixes com o bico. Por isso te apelidaram assim.
_Ah, é!... Tô sabendo agora.
_Aliás, você nunca conseguiu me fazer enxergar nenhuma cor. Hoje, através da leitura, entendo a sua dificuldade de me fazer ver as coisas, principalmente as cores que são tão abstratas.
_Tô ligado..., a “Mim”, agora, é intelectual.
_Não, ainda tenho muito que aprender. Mas, os livros me fazem ver. Quando leio, não estou cega: vejo com a narrativa do autor; com os olhos das personagens; e, mais: sinto, vivo.
_Nunca lhe falei que sou negro porque tenho vergonha. Você é branca, bonita, e falava pra todo mundo que era minha namorada.
_Vergonha de sua cor, Biguá, ora essa. Deveria ter vergonha de não ir à escola, isto sim.
_Deixa pra lá..., e o Arco-Íris, consegue ver, lendo livros?
_Sabe, é uma coisa difícil. Mas tenho certeza de que um dia conseguirei ver o Arco-Íris com todas as suas cores se destacando entre as nuvens e sob o azul do céu.
_”Mim”, desculpe-me, por não conseguir te fazer ver o Arco-Íris; mas, só posso ver, não sei explicar como é.
_Não se desculpe Biguá. Você não é o único que pode ver a forma e as cores, mas não sabe explicar a essência que emana das coisas por falta de leitura: pior cego é aquele por não ler. O Arco-Íris sempre esteve aí pra nos mostrar que o mundo é redondo e que a luz do sol é o conjunto de todas as cores. Quantas maravilhas da natureza estão aí a nos mostrar a verdade, mas o nosso conhecimento atual não nos permite enxergar. O universo é um livro aberto e não lemos, ainda, sequer a primeira página.
Uma semana depois, num tiroteio entre grupos rivais, um pedaço de chumbo quente do tamanho de uma jujuba – guloseima que sempre desejou e nunca experimentou – cinzento como o céu naquele momento, tirou a vida de Biguá. O córrego e as pipas, talvez, sentirão mais a sua falta do que as pessoas que conviveram com ele. Yasmim foi a única que chorou sua morte. As lágrimas, que rolaram de sua face em gotas prismáticas, encerravam, em cada gota, um pequeno arco-íris.
Chovia muito no dia de seu enterro. No velório, pouca gente compareceu. Na verdade, apenas a mãe e a avó de Biguá, Yasmim acompanhada de sua mãe e curiosos de velórios vizinhos. Na hora do enterro, a chuva, em sua homenagem, estiou: um pequeno intervalo para recebê-lo na terra encharcada da mesma água, agora purificada pela terra santa, que um dia banhou seu corpo no preguiçoso córrego, único alento lúdico de uma criança – apesar de tudo – naquele momento, feliz. Na pequena placa quadrada de concreto que serve de lápide, uma inscrição: Benedito Francisco da Silva – 1990 – 2006 -. Viveu como Biguá e será Benedito até que a placa se perca nos entulhos do cemitério.
Yasmim, levada por sua mãe, após as últimas porções de terra sobre o túmulo de Biguá, alguns metros distante, sente algo estranho e pede a sua mãe que olhe para o céu e lhe diga o que vê. Sim, um lindo Arco Íris se formara, confirma a mãe. Visto de onde Yasmim está, parece emoldurar o túmulo de Biguá, como se fosse uma coroa de flores multicoloridas, que ninguém se preocupou em levar.
Yasmim não viu o Arco-Íris com seus próprios olhos, e nunca verá. Mas, imaginou Biguá lhe mostrando e assim pode ver; em todo o seu esplendor; destacando-se entre as nuvens e sob o azul do céu; em vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, índigo e violeta (vermelho lá vai violeta); de uma extremidade a outra; em listras curvas e paralelas: o fantástico Arco-Íris, um acontecimento fenomenal. Em nenhuma extremidade encontrará um tesouro, ela bem o sabe, e se lá tiver, com certeza será um livro: o verdadeiro tesouro, a ponte, como um Arco Íris, da ignorância para o conhecimento.
Carlos Alberto Affonso.
carlinhosaffonso@hotmail.com