ASSOMBRAÇÃO DA MULA

Nas noites de lua-cheia é que a Mula-Sem-Cabeça vinha assombrar a fazenda com suas chamas saindo do pescoço.

Naquela noite não seria diferente. Saiu do meio da mata pronta para causar medo nos peões. Passaria bem perto das janelas e com um relincho faria pensarem que se tratava de algum cavalo que fugira dos estábulos e quando vissem todo o seu fogaréu, sairia contente por ter feito bem o seu trabalho de assombração ao ver que os homens corriam desesperados sem saber para onde ir.

Pois bem, se aproximou da primeira janela. A noite era boa porque fazia calor e os peões dormiam com a janela aberta e não seria tão difícil de assustá-los. Deu uma espiadinha e soltou o seu relincho o mais alto que podia. Não deu outra; vendo aquele fogo todo no lugar da cabeça da Mula, não teve homem que não desmaiasse ou saísse correndo em disparada pelo meio do pasto. E era assim que a Mula gostava. Quando corriam pelo pasto, ela corria atrás, assustava mesmo, que esse era o seu trabalho.

Quando voltava toda feliz com a missão cumprida, foi que ela se deparou com os outros animais reunidos lá na frente. Era estranho que não saíssem correndo. De fato, até os animais temiam a Mula-Sem-Cabeça.

Aproximou-se devagar. Quem sabe eles ainda não tivessem percebido que a Mula estava ali e por isso não correram.

— Boa noite!— disse ela num tom bem fantasmagórico. Mas ninguém deu a mínima para a Mula.

Ignorada daquele jeito, ela queria saber o que era mais interessante que uma assombração.

De repente, percebendo que a Mula se aproximava, alguém disse sem medo algum:

— Chegue mais perto!

Quando a Mula se aproximou todos exclamaram: “Ohhhh!”.

A Mula ficou contente, afinal — até que enfim —, haviam percebido que ela estava ali.

No entanto, o “Ohhhh!” não havia sido para a Mula. Com a luz produzida pelo fogo que saía de seu pescoço, todas as vacas e os cavalos da fazenda podiam ver melhor as ferraduras e o pelo branco da égua recém chegada.

Como toda a novidade, aquela égua atraía toda a atenção para si.

— Grande coisa!— disse a Mula, mal conseguindo esconder uma pontinha de inveja.

Mas não era para ter falado alto; era apenas um pensamento e não deveria ter sido ouvido. Mas foi.

Todos os animais ouviram e a égua também ouviu. A égua que gostava de ser o centro das atenções não gostou do comentário, mas disfarçou. Disfarçou tão bem que foi até mais simpática ao falar com a Mula:

— Ora Dona Mula, não vamos ser inimigas! Chegue mais perto!

A Mula que não queria parecer invejosa se aproximou da égua.

Quanto mais perto chegava, mais os outros animais exclamavam com o brilho do pelo e das ferraduras novinhas.

A égua ergueu as patas bem altas para que todos pudessem admirar ainda mais aquelas belezuras que causavam tanta inveja na Mula.

Pobre da Mula, seu maior sonho era ser como aquela égua. Daquele jeitinho, com o pelo bem tratado e com ferraduras novas protegendo seu casco. Mas sua realidade era outra. Sua vida era amaldiçoar as fazendas e sumir com o fim da noite.

A égua sabia que a Mula a invejava e por isso, quando ela chegou bem perto para olhar as ferraduras, de maldade, baixou as patas com toda a força fazendo com que o coxo de água viesse todo pra cima da Mula.

Para a pobre da Mula não restava outra coisa senão sair correndo sob aqueles risos todos e, se não bastasse a vergonha, ainda fugia com as suas chamas apagadas; no lugar do pescoço apenas aquela fumaça que não servia para assustar ninguém.

Naquela mesma noite, ao ouvir aquele choro equino no meio da mata, o Saci veio consolar a Mula:

— Diga o que aconteceu, Dona Mula. Não vai me dizer que só agora é que percebeu que não tem cabeça e por isso tá chorando!?

— Não é nada disso, Saci!

E a Mula contou toda a história para o amigo. E o Saci prontamente se ofereceu para ajudar.

Rapidamente pegando o seu cachimbo, o Saci, com uma baforada, devolveu o fogo à Mula-Sem-Cabeça.

Mas não era apenas isso. A égua merecia uma lição para deixar de esnobar as pessoas daquele jeito.

A Mula que possuía uma mente brilhante, logo teve uma ideia e voltou para a fazenda.

O grupo estava ainda reunido contemplando a égua que não cansava de se exibir.

— Vim lhe pedir desculpas, égua! Acho que fiquei com inveja e acabei te tratando mal! Desculpe!

Todos olharam assustados por que não esperavam aquela reação de uma assombração. Até a égua não acreditou naquela história e pediu para que a Mula se aproximasse novamente para dar um castigo naquela assombração invejosa de uma vez por todas. O coxo estava preparado e, quando a Mula se aproximasse, teria mais uma vez o seu fogo apagado.

— Chegue mais perto, Dona Mula!

A Mula se aproximou.

Os animais que assistiam a tudo não podiam acreditar que a Mula a qual eles tanto tinham medo ia cair naquela armadilha da égua mais uma vez.

Ali, bem pertinho, e antes que a égua virasse o coxo, a Mula falou:

— Nossa, égua!

A égua se surpreendeu com o grito assustado da Mula que olhava para ela.

— Nossa o quê?

— Como pode você tão bonita, tão bem tratada, andar com essa crina roda fora de moda?

— E o que entende de crina se nem cabeça você tem?

Os animais riram por que a égua era esperta.

— Bom, é verdade! Realmente, não tenho cabeça... mas se eu tivesse com certeza usaria um penteado mais moderno.

— Moderno como?

— Não sei, essa coisa de crina lisinha, chapada, tá meio fora de moda!

— Fora de moda? Mas...

— Mas não esquenta a cabeça — olha que de esquentar a cabeça eu entendo!

Os animais riram e aguardavam para ver o que planejava a Mula.

— Vou chamar um amigo que entende tudo de crinas!

Para espanto dos cavalos, a Mula assoviou. E todos os cavalos sabiam que quando se assoviava, não demorava nem um pouco para que o Saci aparecesse. E não deu outra, detrás do bambuzal veio cada vez mais próximo o assovio do negrinho.

Os cavalos ficaram alvoroçados por que já conheciam o Saci e o quanto ele atormentava os cavalos trançando suas crinas e montado em seus lombos.

Parecia que a égua não conhecia o Saci e quando ele se aproximou não demonstrou ter medo. Talvez estivesse tão preocupada com o fato de sua crina estar fora de moda que nem se preocupou com o que o menino pudesse fazer.

— Este é meu amigo Saci! O melhor cabeleireiro dessas bandas, ele pode ajudar!

E a égua não pensava em outra coisa senão em sua crina que assentiu que o Saci a deixasse na moda.

Quando o Saci terminou o trabalho, todos exclamaram surpresos “Ohhh!” e a Mula riu alto.

De repente, a égua percebeu que a Mula se vingava.

— O que você fez com a minha crina?— ela perguntou para a Mula.

Mas a mula já estava longe, voltava para a mata ciente de que fizera a coisa certa.

A égua desesperada perguntava aos animais que mal podiam acreditar na atitude da Mula e não respondiam.

Sem saber como estava sua aparência, a égua desandou a chorar.

Vendo que o castigo já fora o suficiente, os animais mandaram que a égua olhasse o próprio reflexo na água do coxo.

Até a égua se surpreendeu.

O Saci fizera um ótimo trabalho. Suas crinas estavam mais bonitas do que nunca e ali, olhando a água, vendo sua cara de bocó, a égua sentiu toda a vergonha do mundo.

Sentia agora pela mula grande admiração, mas não deixava de se esconder quando ouvia o relincho da Mula-Sem-Cabeça naquelas noites de lua-cheia.

Fabiano Rodrigues
Enviado por Fabiano Rodrigues em 17/02/2010
Código do texto: T2091676
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