Charles III

Olá caro amigo,

Não sei se devo chamá-lo de amigo, é a primeira vez que venho aqui, não sei como começar um diário, o experimento é novo para mim, então ser clichê virou uma opção considerável, de qualquer jeito, irei do início. Meu nome é Charles Williams III, venho de uma família nobre, já extinta. Sou o último Williams, algo que já não me incomoda mais, talvez esteja acostumado, ou talvez os resquícios de humanidade que eu tentava manter já foram escravizados pelo que eu sou agora, pelo Charles do mundo moderno.

Busco nesse caderno insignificante, encontrar algo em minha terrível solidão, talvez um legado a ser deixado, ou uma boa história de terror. Como disse, irei do início...

Londres, 1849, Era Vitoriana, Pax Britannica

A Inglaterra estava em seu auge, uma era de ouro, projetos que visavam melhorar a vida dos ingleses, grande desenvolvimento econômico e industrial, o ano antecedia a Segunda Revolução Industrial, reinavam a paz e a Rainha Vitoria. Em grande porcentagem, a plebe aprovava seu reinado, tinha um ou outro opositor, mas era algo comum e esperado. A certeza era de que o país se tornava o mais rico e poderoso do mundo. A prosperidade era evidente.

Com a expansão industrial, minha família e principalmente meu pai, enriqueceram demasiadamente. Papai já era um senhor de cabelos longos, grisalhos e barba por fazer, tinha me criado para ser um fervente aristocrata, sempre priorizando a me ensinar as doutrinas de um verdadeiro inglês. Porte-se assim Charles. Fale desse jeito Charles. Modos Charles. No fim, todo o seu trabalho tinha valido a pena, nunca esqueci suas lições e acabei tornando-me um admirável fidalgo.

Talvez sua única decepção fora quando decidi não aderir ao "negócio da família", como ele mesmo se referia. Escolhi os livros, a filosofia, lembro até hoje da minha primeira “viagem literária”, a primeira vez que tive a experiência nesse incrível mundo particular. Barnaby Rudge, de meu xará Dickens, lembro que o encontrei nos arquivos pessoais abandonados de meu avô, fascinei-me no mesmo instante em que o vi, após ler seis vezes seguidas, dei-me por arriscar a conhecer outras obras de Dickens e novos autores, não demorou para aproximar-me de Herbert Spencer e do casal Browning.

Lá estava eu, um párvulo amadurecido, em minha rotina diária; acordava cedo, dirigia-me para a biblioteca local e ficava por lá, perdia a noção do tempo e fome, devaneios alertavam-me que já era tarde e que deveria voltar para casa, isso quando não era a bibliotecária que tinha a árdua tarefa de tentar me desconectar do elo transponível entre eu e o exemplar da vez.

Mas naquela noite foi diferente, acabei por adormecer perante uma pilha de livros sobre energia das espécies, ou algo do tipo. O sonho que tive, foi o mais real de toda minha existência amarga, até hoje não sei se fora uma visão ou apenas um sonho, pois algo parecido ocorreu-me naquela noite. Nesse fúnebre devaneio, eu estava sendo caçado, não sabia pelo que, só depois de alguns anos consegui desvendar o tipo de criatura sombria que perseguia-me. Faz muito tempo, mas recordo-me do sonho como se tivesse o vivido inúmeras e inúmeras vezes.

Escuridão. Nenhum pingo de luz, nenhuma faísca de esperança, não sentia a presença de energia, seja ela boa ou má, só conseguia sentir solidão, ódio, dor, desespero. A morte estava presente, muito mais viva que o ser humano mais alegre. Tinha um estranho pressentimento que não estava sozinho, a onde quer que eu estivesse, algo estava se movendo na escuridão, talvez fosse a própria escuridão que insistia em aproximar-se, dando propositalmente lentos passos em falso ao fim de assustar-me ou incitar uma perseguição, que no caso, deu certo, porque corri, e como eu corri, não sei para onde, não sei se me distanciava do medo ou se corria para ele, se chegava a margem da floresta, ou se adentrava mais o musgo do chão e nas samambaias. Depois de horas correndo sem rumo, já exausto, encostei-me em uma árvore para recuperar o fôlego, o desespero já tinha tomado conta de mim, quando ouvi um barulho entre árvores e arbustos; uma voz tenebrosa, mas mesmo assim com um suave romantismo em seu tom, sussurrando as seguintes palavras:

In camera, fiat lux, curriculum vitae.

E a morte atacou-me, parou lá, estagnada, conectada, alguns segundos e eu já não sentia mais meu corpo, meu pescoço. Acordei suando e assustado, decidido a desvendar esse sonho tão real. Quando dei por mim, olhei em meu relógio de bolso e percebi que estava atrasado, a pessoa com quem eu devia me encontrar não tolerava coisas do tipo, nosso encontro era secreto, a época não era das melhores para pessoas como eu, estudiosos e filósofos, éramos caçados pela coroa, a não ser que concordássemos com a opinião um tanto quanto ditatorial da rainha a respeito do que moralmente era certo ou errado. Ainda bem que a rainha não era tão ingênua ao ponto, e sabia que querendo ou não, era manipulada, uma importante marionete; por isso, a mesma buscava conselhos de um moçoilo dedicado, arrogante e corajoso, que no caso era eu.

Fui até a Piccadilly Circus, onde sua carruagem já estava esperando, entrei, fui deferente, pedi desculpas pelo atraso e conversamos por cerca de meia hora, não lembro bem qual era o assunto, a única coisa que lembro de Rainha Vitória foi a tentativa desesperada de atacá-la por minha parte, mas deixo isso para outra página...

A rainha ofereceu-me carona para casa, já era bem tarde, não havia uma alma viva na rua, mas educadamente recusei, precisava espairecer, redirecionar as ideias e pensar sobre aquele maldito devaneio. Ao sair da Piccadilly, caminhando para casa, aquela estranha sensação ressurge na escuridão da noite, com medo do que me aguardava, acelerei meus passos; de repente, pressinto um vulto atrás de mim, olho para trás e um homem seguia-me, acelero ainda mais, dou uma última conferida, e o homem tinha sumido.

Ao virar a esquina, começo a correr, até então não tinha reparado na chuva, quando meus passos desesperados fazem-me escorregar e cair, molhando e espalhando todos os livros que levava para casa. Em uma falha tentativa de recuperá-los a tempo de continuar minha fuga, nitidamente escuto o sussurro do Diabo...

In camera, fiat lux, curriculum vitae.

Não sei se era alguma prece, um ritual ou uma conjuração, a única certeza que eu tinha era de que a minha vida nunca mais seria a mesma.

Acordei na manhã seguinte, revigorado, mas com resquícios de embriaguez. O que era estranho, pois não consumia álcool, nunca tinha colocado em minha garganta um pingo sequer do que denomino ser água com veneno. O que eu sentia era uma ressaca infernal, parecia que o próprio capeta tinha subido ao purgatório e me oferecido seu drinque imortal, o elixir das profundezas do inferno. Tudo doía, meus olhos e ouvidos pareciam que iam explodir; aparentemente, meus sentidos estavam aguçados, porém um pouco grogues.

O fedor era insuportável, a sensação claustrofóbica, pior ainda. Tentando locomover-me, descubro que estou dentro de uma caçamba de lixo. Ao abri-la e confrontar a luz inglesa matinal, vejo o beco em que estou.

“Como fui parar aqui?”

Ainda cambaleando, chego ao início do beco na esquina com a rua movimentada de uma comum manhã londrina, quando aconteceu.

Um surto. O primeiro de muitos. Uma fragrância avassaladora rodeou-me, foi mais forte que eu, não pude controlar... Simplesmente, eu podia ver e sentir a pulsação das artérias de todas as pessoas ao meu redor e com um inexplicável desejo de rasgá-las; acabei atacando a primeira donzela que passava em minha frente.

Todos gritaram assustados, correram para diversas direções. Já eu? Não dava a mínima para o que acontecia ao meu redor, nunca tinha provado algo tão doce e saboroso, deleitava-me sem parar, era a melhor sensação de todas.

Um moço tentou parar-me e afastou-me da pobre donzela. Coitado, tornou-se a próxima vítima, dessa vez fui mais rápido do que na primeira. Os policiais destinados à ronda local logo apareceram.

“Mãos ao alto, largue este homem; senhor faça o que eu digo.”

Claro que ignorei, o gosto do rapaz era tão bom... Quando a dupla se aproximou, parecia que meu radar tinha apitado e os detectado. Avancei contra as autoridades, matei-os rapidamente, praticamente os destrocei. Ao meu redor, não sobrara nada. Logo uma fúria subiu pelo meu corpo e berrei. Não foi um berro, um grito, foi mais um rugido, como um animal. Uma demonstração de poder, agora todos sabiam quem era a verdadeira autoridade.

Após o advento, lembranças da noite anterior surgiram como uma estrela cadente, agora estava tudo tão claro, e, recordado, fiz o meu pedido: Iria encontrar quem tinha feito àquilo comigo e descobrir o que tinha me tornado.

Em uma frustrante tentativa de chegar a rua da noite anterior, saltando pelas construções locais, um cansaço corroeu-me, estava esgotado, exaurido; de repente, caio em uma viela, petrificado.

[...]

Marquês de Verona
Enviado por Marquês de Verona em 27/04/2017
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