Fantasma
"Sonhos. Estes pequenos pedaços de morte. Como eu os odeio!"
Estou caído no canto mais ignorado dum quarto alheio. De fato não sei o motivo de estar ali, talvez esteja apenas dormindo. É, deve ser isso! Só pode ser. É uma manhã cinzenta. Por que não sinto o frio das brisas que, vez ou outra tocam as paredes de cores frias desse lugar tão triste? Para tudo há uma explicação, eu simplesmente não o sinto porque minha consciência está “fora do ar” enquanto sonho. É, deve ser isso! Só pode ser. Continuo a observar a mim mesmo, como que tentando controlar a minha quimera, uma vontade de quebrar um pouco a rotina: sempre fui muito ocupado, no entanto sempre quis tomar outros caminhos que não os mesmos de todos os dias. Sabe aquela vontade de ousar? “Ousar”, esse verbo não tem nenhuma conexão comigo. Na verdade, nunca me dispus a novas experiências. Não vejo mal algum em ter medo das impossibilidades. Acho até que é vontade de viver sem ver o lado negativo das coisas. É, deve ser isso! Só pode ser. Enquanto penso nessas coisas, lá estou eu, jogado ao chão, semblante moribundo, distante de tudo, dormindo tranquilamente. Que paz! Desse jeito nenhum dos meus familiares pode infortunar este momento sagrado com seus problemas. Lembro que sempre tapei os ouvidos de minha alma para os prantos de cada um, meu pai, minha mãe, irmãos. Quem quer que arruinasse, ou quebrasse a lógica minha de viver: Sem problemas. Sem preocupações. Talvez, só quisesse ser feliz. É, deve ser isso. Só pode ser. Família. Fa-mí-li-a. Sempre os amei da forma correta, tenho plena certeza. Meu pai, homem ausente, quando não, violento, contudo fervoroso. Fingi minha vida toda não me importar com ele, meu orgulho construira alguém que esconde as dores dos mais próximos, busquei em quem pouco me conhecia- bem pouco- as respostas de perguntas mal-formuladas. Na verdade, nunca as formulei, tampouco obtive tais respostas.
Pai, tinha que ser tão duro? Seu coração mais parecia ser feito de aço. E o meu, de que será feito? Pois, ao menos dos seus olhos vi escorrer lágrimas quando virei as costas para a sua doença. Doença rara. Quantas vezes te vi jogado feito um cão sarnento em seu leito fétido? Às vezes, me dava pena. Coisas de ser humano.
Sempre me escondi em minha racionalidade: lutei a vida toda para suprimir um lado emotivo. Sabe, nesse mundo pisam em pessoas sinceras, que falam, sentem, vivem sem estratégias, um imperatismo universal que desnutre o verdadeiro sentido de viver. Pai, eles merecem a morte, você não acha? Pai? Acho que não pode me ouvir, estou gritando por toda a casa.
Estou sonhando ainda? É, deve ser isso. Só pode ser.
De repente me veio a imagem daquela tarde de setembro, não recordo o dia e o ano, porém lembro bem de minha mãe, meus irmãos e eu no quintal, talvez tívessemos 8, ou 9 anos, sei que sou o mais velho dos três. Ouço algumas vozes agora. Insisto na lembrança. Aos poucos vejo aquele espaço tão amável se reconstituindo diante do meu corpo, ainda estirado ao chão. Dessa vez posso ouvir os sons do passado. Minha mãe está cansada, mas ainda assim faz de tudo para dedicar suas energias a nós, me culpo por não ter dado a ela o valor devido. Subo em seus ombros, e brinco com ela. Incrível, todas as vezes que lembrava disso, não conseguia conter as lágrimas de saudade. Nesse momento, não as sinto percorrer meu rosto. Que sensação horripilante! Lembro desses acontecimentos, mas não do nome das pessoas, não de seus rostos, só as informações limitadas que me angustiam. No entanto, me valho do orgulho - orgulho doce, saboroso- não quero sentir vontade de perseguir essas lembranças tão boas. Quero me esconder. Esconder o fraco humano que meus olhos traidores trazem à tona. Ah! Se eu pudesse vará-los de uma vez para fora! Traidores! Traidores!
Ainda posso ouvir aquelas vozes. Será minha mente? As lembranças? O subsconciente? De onde vêm tantas? Mal posso entendê-las nesse mar de sons. Estou mergulhado meio a muitas coisas, talvez as tenha vivido, talvez nunca, talvez um dia. Por que sou tão inexpressivo e indiferente às realidades das quais lembrei? Claro! Porque são apenas fatos que nunca tornarei viver: Lembranças. Nada mais. É, deve ser isso. Só pode ser. Concentro-me apenas na visão de mim mesmo em estado de escravidão. Escravo do sono. A propósito, já deveria ter acordado. Nesse momento, sinto que aquele lugar me tornara vulnerável, se alguém entrar no quarto vai achar que me entreguei ao cansaço. Isso será ridicularizante. Não posso aceitar isso! Preciso acordar logo. Esforço-me, mas não consigo. Estarei eu preso nesse sonho? Já chega! Continuo tentando levantar desse estado. As vozes cada vez vão ficando mais audíveis, organizadas. Arrisco ouvi-las, algumas parecem estar com pressa dizendo: “Venha logo! Venha, rapaz!” Mas, pressa por que? Por que chamam meu nome? Só quero acordar... viver como sempre vivi.
Clarão. Sim, um clarão e já não vejo as imagens distorcidas do passado, muito menos a mim: a me comprazer enquanto dormia. Em fim, estou acordado, porém percebo que estou em movimento. Se trata de um coletivo. Estou sentado na cadeira de deficientes, de lado e não olhando para frente. Sabe, aquela postura em que não se precisa olhar para o rosto de algum desconhecido, somente para o destino que se espera? Me sinto observado, obrigado a olhar naqueles rostos. Que sensação estranha! Sempre direcionei minha vida de modo a ignorar essas pessoas, esses pontos que costuram meu destino do jeito que bem entendem. O terror tomou conta de meu coração quando os olhei fixamente: Sem olhos, boca. NADA! Apenas uma miríade de vozes ecoando de seus assentos como as que diziam: “Venha logo! Venha, rapaz!” Por que chamam meu nome?
Mãos aos ouvidos. Apenas os olhos fitados no horizonte. Pinturas impressionistas o compõe. Ao longe vejo meu corpo e um saudosismo se apodera de mim. Vejo cartas ao meu redor e elas dizem o que desde o início não queria saber: "Adeus!"
Só posso estar sonhando. É, deve ser isso. Só pode ser!