Amorzinho
Não tinha vontade de se levantar. Nem de abrir os olhos. Nem de respirar. Só tinha vontade de ter alguma vontade. Mas seu coração ainda acelerado não a deixava se concentrar em outra coisa. Suas lágrimas não permitiriam que seu sofrimento fosse esquecido. As dores físicas que a dominavam nunca mais parariam de doer. E jogada na cama, com os olhos fechados, ouvia barulhos vindos da cozinha. Um copo de vidro caindo no chão e sendo estilhaçado. Uma pancada no fogão. Um prato sendo arremessado sem dó dentro da pia. Passos pesados. A porta batendo. O carro sendo ligado e seu motor... ficando cada vez mais longe, mais baixo, até desaparecer. E apesar das turbulências de seu cotidiano sofrido, ela tinha a leve e aliviante sensação de que tudo havia acabado... depois de tantos anos de lamúrias.
Abriu os olhos de modo cauteloso, com medo de encontrar, de repente, a morte vindo lhe buscar. Mas só enxergou seu quarto. Seu quarto escuro, parado e silencioso, e agora também bagunçado e sujo. Estava com uma aparência lastimável. Ambos. Ela e o quarto. Como pudera passar tantos anos dentro daquele cômodo, encarando todos os dias aquele cenário melancólico? Não aguentava mais. Deu um suspiro profundo e tentou levantar-se.
Teve dificuldades, pois todos os seus membros doíam. Ao sentar-se na cama, pôde ver seu reflexo em um espelho comprido fixado na parede. Teve vontade de morrer. Ela, cuja beleza sempre a acompanhava onde quer que fosse, cuja vaidade era reconhecida e admirada por todos… agora de nada valiam. Ela, que nunca aparecia em público sem estar maquiada ou trajada com vestimentas elegantes, agora se deliciava sadicamente com sua imagem monstruosa. No primeiro momento, pensou que sua feição abominável nunca mais voltaria a ser tão bela como antes. No segundo, percebeu que nunca mais queria sair daquele quarto, pois ninguém podia ver “a coisa” que ela havia se transformado – seria humilhante. Mas depois, teve a esperança de que nos próximos dias, aquela marcas desapareceriam. Pelo menos, rezaria todas as noites para que não fossem eternas, embora ela soubesse que por dentro eram.
Levantou-se da cama, apoiando em todos os móveis próximos, evitando cair e piorar sua situação. Com o corpo curvado e passos fracos, caminhou lentamente, quase caindo. Cada passo doía como se fosse o último.
Passou pela cozinha também revirada. Ao chegar próxima a pia, parou e encostou-se com as duas mãos para descansar os músculos. Foi quando percebeu, entre uma respiração ofegante e outra, um facão enorme, fosco e sujo – parecia que tinha acabado de ser usada -, perto de seus dedos. Não pensou duas vezes. Pegou-a e, com a mão tão trêmula quanto seus lábios, levou ao seu pescoço. Sentiu-se realizada. Ela estava no ponto que desejava. A lâmina gelada em seu pescoço encheu seu corpo de empolgação e medo. Com um só golpe, poderia libertar-se de todo aquele sofrimento. Mas quando a ponta do facão estava prestes a lhe cortar a garganta, lembrou-se seus amigos. Lembrou-se de sua família. Lembrou de seus filhos. Ela não podia deixá-los agora. Ela precisava de ajuda. E suicídio não era a melhor opção de ajuda naquele momento.
Suas mãos fracas deixaram o facão cair ao chão, e o som angustiante do metal aterrissando com violência sobre o piso lhe causou uma das sensações mais torturantes de sua vida. O ruído estridente que percorreu como um eco pelo silêncio da casa lhe acertou como um punhal. Tampou os ouvidos com as duas mãos e fechou os olhos. Suas pernas tornaram a ficar fracas, gritos voltaram a ecoar em sua mente e lampejos de pesadelos reais despertaram e morreram em uma fração de segundo. Epifania reversa. Deixou-se cair sentada ao lado da mesa, tentando espantar aqueles fantasmas que a assombravam. Naquela cozinha mal-iluminada e solitária, ela se viu sem saída. Sua vida estava arruinada.
De repente, o aroma tão angelical daquelas flores lhe invadiu as narinas, e ela se sentiu feliz de novo. Abriu um inesperado sorriso. Sentiu o sol tocar sua pele. Abriu os olhos. Lá estava ela, bela de novo, sentada debaixo daquela árvore. Crianças corriam de um lado para o outro e uma leve ventania fazia a copa das árvores balançarem naquela praça ensolarada.
Uma sombra, porém, cobriu seu corpo, bloqueando-lhe a luz do sol. Ela olhou para cima e viu aquele rosto tão bonito, com um sorriso tão galante e olhar sedutor. Há tempos não se sentia atraída daquele jeito. Ele disse, com sua linda voz:
- Posso sentar-me ao seu lado?
- Claro. – ela respondeu, tentando não se afogar no azul dos olhos que a miravam.
Ele se sentou e com um dos braços a envolveu. Deitou sobre seu peito e assim voltou a admirar a felicidade concretizada na espontaneidade das pessoas. Fechou novamente os olhos e sentiu-se flutuar. Mas tudo voltou a ficar frio. Tudo voltou a morrer. A felicidade evaporou, se sorriso se fechou e ela, contra a vontade, novamente abriu os olhos.
Como é triste voltar à realidade. Ao presente. Deitada no chão sujo de sua cozinha, achava-se literalmente um trapo. Suas roupas rasgadas e seu cabelo desgrenhado tiravam sua identidade. Ela nem mais se considerava quem costumava ser, apenas os restos. A carcaça destruída que sobrara de recordações tão belas.
Uma ideia maluca surgiu em sua mente. Maluca no sentido de incomum. Maluca no sentido de surpreendente. Maluca no sentido de ousada. Maluca no sentido de degradante. Autodegradação. Essa seria a palavra perfeita para definir seu plano. Autodegradação. Onde a infelicidade não leva uma pessoa?
Novamente a passos frágeis, voltou ao quarto e abriu seu guarda-roupa. Calças compridas, casacos, blusas. Um mundo de roupas de frio lhe saltaram aos olhos. Mas não estava frio. O sol estava brilhando lá fora. Ironicamente. “Onde está?”, pensou. E revirava com cuidado todas aquelas roupas, enquanto novas más recordações voltavam a lhe atormentar sem piedade. Para seu desapontamento, ela havia jogado fora as últimas peças de roupa curtas que tinha. E agora, só aquela coleção de sufocamento estava preservada. Abriu uma gaveta qualquer do guarda-roupa e tirou uma tesoura. Arrancou do cabide, com uma violência tremenda, o primeiro vestido que encontrou. E passou a cortá-lo, rasgá-lo, picotá-lo de qualquer jeito. Toda a raiva contida que reprimiu por todos esses anos, foi descontada em um simples vestido preto. A cada novo corte, imaginava rasgando a face odiável daquela pessoa. E finalmente sentiu que chegara a hora. Ofegante, viu como o vestido havia ficado. Se é que podia chamar aquilo de vestido ainda. Chegara a hora de gritar em silêncio para que todos pudessem ouvir. Chegara a hora de sentir o sol lhe tocando, após tantos anos enclausurada embaixo de tecidos que lhe impunham e de uma rotina amedrontadora a qual se submetera. Chegara a hora de enfiar uma estaca no que lhe asfixiou por tantos anos. Chegara a hora de mostrar que ainda existia.
Vestiu o vestido, pegou sua bolsa e saiu na rua. Por sorte, estava bem movimentada. E qual não foi sua felicidade e alívio ao sentir-se finalmente refrescada, como há muito não sentia? Ouvia sua pele respirar. Ouvia seu coração dançar ao som da brisa. Ouvia seu corpo flertar com a melodia do vento. E logo, todos os olhos daquela rua viraram-se espantados para encararem aquela moça de aparência tão lastimável. Um rosto cheio de marcas destacava-se na multidão. Suas pernas naturalmente brancas, agora com tons arroxeados. E que ainda por cima mancavam. Uma moça de corpo com formas tão belas, mas cheio de feridas e arranhões e marcas de uma bela surra. Era algo não muito bonito de se ver. E ela nem ligava. Gostava de ver os olhos estarrecidos para sua imagem. Gostava de ver que todos estavam chocados com o seu sofrimento. Sua vergonha transformou-se em orgulho. Sua tristeza deixou-se pender para o lado da vingança. E com aquela destruída, para fazer jus ao seu estado físico, andava desfilando pelas ruas, expondo para todos os estragos horripilantes em seu corpo.
Até que finalmente, uma de suas vizinhas, decidiu vir lhe falar, para matar sua curiosidade e a de todos que viam aquela cena.
- Pamela – exclamou a senhora. – Que marcas horríveis são essas nas suas pernas, nos seus braços e no seu rosto?
Ela deu um suspiro, abriu a bolsa e tirou uns óculos escuros de dentro.
- As amostras de afeto do meu amorzinho.
Abriu os óculos e colocou-os. Voltou a andar, deixando sua vizinha boquiaberta com a resposta.
E ainda sentindo prazer em mostrar para todos seus membros violentados, dobrou a esquina e nunca mais foi vista por ninguém. Nem por sua família. Nem por seus amigos. Nem por seus filhos. Nem por seus vizinhos. E muito menos por seu amorzinho, cujo destino já estava traçado.