EU E OUTROS PESADELOS
A vida de Laura foi um romance existencial intercalado por capítulos luzentes e sombrios. Era filha única de pais separados. No colégio era uma aluna solitária e de poucas palavras. Na adolescência, não recebeu do pai e da madrasta o amor de que necessitava para se tornar uma adulta feliz. A vida lhe disse muito, mais do que esperava ouvir da vida. Laura aprendeu com a vida a dar valor à própria vida. Gustavo, seu marido, está condenado a se lembrar para sempre da noite que passou em claro no dia em que Laura fora sepultada no cemitério Bosque das Falenas. No manto escuro daquela noite estrelada, tão radiantes e tão altivas, até as estrelas se entristeceram. Após a sua morte, Gustavo mudou-se para Maia, uma cidade localizada na região norte de Portugal, o país dos seus ancestrais. Por meio de uma prima residente em Coimbra, soube que Maia possui uma elevada qualidade de vida. Por coincidência, embarcou no avião no dia 23 de agosto, dia em que a antiga Vila Maia foi elevada à categoria de cidade.
No ano seguinte, Gustavo já estava familiarizado com o seu novo mundo. Manhã de sábado. Céu aberto. Rua arborizada. Tranquilidade. As folhas caídas na calçada serviam de tapete para os transeuntes. Era um lindo dia de outono. Gustavo levantou-se da cama e caminhou até a janela do quarto. Gostava de contemplar o azul celeste. Nesse dia, Gustavo escreveria mais um conto da coletânea “Eu e outros pesadelos”, inspirada na recordação dos momentos sombrios da sua vida. Aposentado do serviço público federal, Gustavo pôde dedicar todo o seu tempo à literatura. Começou a escrever após a perda da família no Brasil. Influenciado pela sua falecida esposa, tomou gosto pela poesia. Com o passar do tempo, passou a se interessar pela prosa. Além da literatura, tinha inclinação também para a pintura a óleo, talento que floresceu após a mudança para Portugal. A pintura a óleo sobre tela é uma técnica de pintura das artes plásticas que Gustavo desenvolvia com entusiasmo. Quando criava um personagem, costumava pintar o seu rosto. No processo criativo de Gustavo, o perfil psicológico, associado ao perfil fisionômico, dava mais realidade aos personagens dos contos que escrevia.
Depois do almoço, Gustavo vestiu-se e foi passear na praça que defrontava o edifício onde residia. Na praça havia muitos bancos, mas Gustavo tinha preferência pelo banco que ficava à sombra de uma azinheira. Sentou-se, abriu o caderno e pôs-se a escrever. Na noite anterior, sonhara com um homem que possuía poderes paranormais. Batizou o personagem com o nome de Levi Ananda. Para o conto que iniciara, escolheu o título de “Segunda Vista”, que é o outro nome da clarividência. Levi Ananda era clarividente. Nos dias que se seguiram, Gustavo dedicou-se ao desenvolvimento do tema que escolhera para o conto. No seu íntimo, acreditava na clarividência como um dom do qual dispõem algumas pessoas eleitas para o serviço ao próximo, sem outra gratificação senão a satisfação em mitigar o sofrimento alheio. Não via nesse dom o poder de tornar as pessoas felizes, mas sim a possibilidade de torná-las menos infelizes. Essa era a sua opinião em relação à clarividência. Às vezes, involuntariamente, afloravam poemas na sua consciência. Passava-os para o papel, mas não fariam parte do livro. Tendo chegado ao desfecho do conto com um final feliz, tocou-lhe o espírito a vontade de versejar sobre as vicissitudes da vida. No silêncio das noites em que meditava sobre a vida, imaginava o mundo como uma estrada sinuosa e acidentada. As curvas representavam as mudanças; os acidentes simbolizavam os desafios. Ele próprio já havia passado por muitos reveses ao longo dos caminhos que percorrera na vida, e em muitos deles fora lançado ao fundo de abismos tenebrosos. No entanto, à custa da tenaz perseverança que lhe era peculiar, sempre conseguira retomar o rumo que traçara para a sua jornada. Cada dia é o tempo oportuno para se mudar de vida. Gustavo conceituava a felicidade como a capacidade de se palmilhar com afinco a trilha dos sonhos, ainda que não se alcance o objetivo idealizado. Do seu ponto de vista, a autorrealização não está na linha de chegada unicamente, mas também no esforço de manter-se sempre fiel aos sonhos. O que lhe importava não eram os louros da vitória; mas a luta, pois é nesta que se aprende a vencer, e a aceitar a derrota com humildade. Na filosofia de vida de Gustavo, o sucesso é como a folha caída que o vento carrega, enquanto que a luta permanece registrada no espírito, pois é da vivência que nasce a sabedoria, e esta é como a rocha firme que a ventania não remove. A sabedoria é uma conquista definitiva. Ser reconhecido é bom para o ego; ter aprendido com o trabalho é excelente para o espírito. Muitas vezes, Gustavo perdeu-se nas neblinas dos caminhos. Algumas vezes, inclusive, chegou mesmo a desistir da caminhada. Nas ocasiões em que se prostrava diante das adversidades, Gustavo convencia o seu desânimo de que elas foram colocadas em pontos estratégicos do seu caminho, e tinham a finalidade de incentivá-lo a aprofundar o seu autoconhecimento, que é, em última análise, o sentido supremo da vida. Após o pôr do Sol, Gustavo embrenhou-se no silêncio da noite, e escreveu este poema, intitulado "Reveses".
Que Deus ilumine meu caminho,
Meu céu e minha vontade de andar,
E que eu veja o mundo com carinho,
Perdoando sempre, antes de julgar!
Porque, às vezes, eu me conduzo na luz,
Mas, às vezes, eu me perco nas trevas!
Que Deus alimente minha fé
Nele próprio, em mim e na vida,
E que eu possa ficar sempre de pé,
Seja na ventura, seja na desdita!
Porque, às vezes, eu me acho inteiro,
Mas, às vezes, eu me desfaço em cacos!
Que Deus me recompense mais
Pela luta do que pelo sucesso,
E que a acolhida eterna da paz
Seja o destino do deserto que eu atravesso!
Porque, às vezes, eu me abrigo nas montanhas,
Mas, às vezes, eu me flagelo nos abismos!
Que o céu se anile sobre a cruz dos dias,
Que os ventos tragam nuvens de alegria,
E que Deus perdoe meu egoísmo nas horas
Em que eu penso em ir-me embora...
O relógio de pulso marcava dezenove horas. Fechou o caderno, como quem fecha o passado, e o guardou na estante. Aguardava a visita de um amigo. Também escritor, Roberto, seu amigo, queria a sua opinião sobre um poema que escrevera para participar de um concurso literário. Nesse dia, Gustavo ganhou de Roberto um exemplar da Bíblia Sagrada, e um convite para frequentar a Igreja Católica da qual era membro assíduo. Gustavo aceitou o convite. Despediram-se com um forte abraço. Antes de sair, Roberto agradeceu-lhe pela crítica literária. Em seguida, Gustavo colocou o exemplar da Bíblia Sagrada sobre a cabeceira da cama. Abri-lo e lê-lo foi uma ocupação para um mês. Fechando o livro, imaginou a possibilidade de reescrever o Salmo 23 à sua maneira. Dessa ideia, nasceu este poema, intitulado “Eternamente”.
O Senhor é o meu pastor,
Nada me faltará!
Deitar-me faz em verdes pastos;
Guia-me mansamente a águas tranquilas;
Refrigera a minha alma;
Guia-me pelas veredas da justiça
Por amor do seu nome!
Ainda que eu andasse,
Ou me arrastasse,
Pelo Vale Sombrio da Morte,
Mal algum eu temeria,
Porque Tu estás comigo,
Porque já és a minha maior alegria
E o meu melhor amigo!
O amor do teu cajado forte
Me protege, e me consola,
Seja na frialdade do abrigo,
Seja na solidão das horas...
Preparas uma mesa perante mim
Na presença dos meus inimigos;
Unges a minha cabeça com óleo,
E assim o meu cálice transborda!
Certamente que a Tua bondade
E a Tua misericórdia
Não me deixarão abandonado
No abrigo da frialdade,
Nem nas horas de solidão...
E habitarei na casa do Senhor eternamente!
Gustavo alimentava a crença de que tudo tem uma finalidade. Nada acontece por acaso. Não era fatalista. Para ele, se Deus existe, a vida tem o propósito de transformar o mal em morte, a morte em libertação, e esta em eternidade. O sono fê-lo deitar-se e dormir. Na manhã seguinte, despertou refeito do esforço mental do dia anterior. Fez o lanche habitual, vestiu-se e saiu levando consigo o inseparável caderno. A caminho da praça, deparou-se com um casal discutindo a relação. Os ânimos estavam exaltados. Essa visão lamentável trouxe-lhe a inspiração para escrever sobre as possíveis consequências do ciúme doentio numa relação conjugal. Como era de costume, sentou-se no banco da praça, pensou por um instante, e começou a desfiar o conto “Sonho premonitório”. À noite, recostado no sofá da sala, releu o rascunho, e percebeu que não ficara a contento. Resolveu, então, reescrevê-lo. Não poupava a imaginação para fazer o seu melhor. Terminada a revisão, balançou a cabeça positivamente, e aprovou o texto. Não cedia ao desânimo. Antes, persistia em todos os seus projetos, tanto na literatura quanto na pintura, até sentir-se plenamente satisfeito com o resultado final do seu trabalho. A próxima tarefa foi pintar em tela o rosto da personagem do conto. Imaginou uma mulher com a idade em torno dos trinta anos, cabelos loiros e estatura mediana. O nome que escolheu tinha tudo a ver com o seu perfil psicológico. Chamou-a de Rosa Maria, pois trazia na personalidade os traços líricos das rosas, quando estas são vistas com olhos poéticos.
No final do outono, a coletânea ficou pronta. Foi num domingo chuvoso que Gustavo concluiu o último conto. A coletânea de contos era um retrato escrito da sua vivência, na qual tecera o drama da sua vida e a sua visão do mundo. No dia seguinte, entregaria o livro à editora para publicação. Era o único livro da sua incipiente carreira literária. Talvez o último, pois pretendia aprimorar a habilidade para a pintura, arte que, até então, mantivera relegada a segundo plano.
A estação do outono estava na sua fase terminal. O inverno já se preparava para entrar em cena. Numa quinta-feira de céu nublado, Gustavo vestiu o seu casaco cinza, e foi passear na praça. Sem inspiração para escrever, dessa vez preferiu somente caminhar, contemplando a imponência das árvores que decoravam a praça. Um local agradável para quem se sensibiliza com as obras de arte da Natureza. Um paraíso, com certeza, para os artistas, estes artífices da beleza. Permaneceu ali, quieto, relembrando as paisagens e as pessoas do Brasil. A semana seguinte inauguraria o inverno, e o inverno estrearia com ímpeto, pois a friagem já se fazia presente. Na manhã seguinte, o céu ainda estava encoberto, e a friagem exterior contrastava com o seu calor interior. Amanhecera com o espírito iluminado, e a alegria vicejava nos seus olhos castanhos. Da janela da sala do pequeno apartamento, fitava a praça como quem admira uma pintura. Viu-se, por um instante, sentado no banco da praça à sombra da azinheira. Pensou em sair, mas as dores lombares o persuadiram a recostar-se no sofá. Sobre a mesa estavam o caderno e a caneta, e no seu coração pulsava uma vontade fervente de escrever um poema sobre o banco da praça que tornara cativo. Levantou-se, pegou o caderno, a caneta e a inspiração do momento e retornou ao sofá. Fechou os olhos, e permaneceu introspectivo. Curvou-se sobre o caderno, e deitou a caneta sobre a primeira linha da página. Os versos vieram depois, dando vida à sua imaginação. O poema dizia muito em poucas palavras, resumindo a sua caminhada pela estrada sinuosa e acidentada da vida. Desengavetou as lembranças arquivadas na memória e escreveu este poema, intitulado “Banco da praça”.
Plantei minhas sementes,
Fiz meus jardins:
Petúnias, gardênias,
Lírios, jasmins...
Plantei meus sonhos,
Criei minhas artes:
Aromas, sabores,
Músicas, cores;
Reguei meus jardins
Com cântaro de água;
Reguei meus sonhos
Com bálsamo de amor!
Preservei a vida,
Cultivei minha paz,
Não fui rico, nem pobre,
Fui feliz!
E hoje, sentado
No banco da praça,
Revivo o passado
Na criança que passa!
O sonho mais lindo que Gustavo realizou na vida foi a família. Entretanto, o tempo tirou-lhe a filha. Depois, a esposa. Vieram os espinhos, foram-se as flores. Em compensação, Deus o presenteou com a literatura e a pintura para que jamais se esquecesse de que a vida é curta, mas pode ser uma linda aventura.