Escritor Fantasma
Escritor Fantasma
por Pedro Moreno (www.pedromoreno.com.br
Com certeza o rapaz era muito jovem para o seu cargo Deveria ter no máximo dezenove anos, porém demonstrava com jovialidade que tinha aprendido tudo. As mangas cobriam parte de suas mãos quando estavam abaixadas, provavelmente herdara de seu irmão mais velho. O cabelo era um caso à parte a ser observado, cuidadosamente arrepiado com um gel de cheiro agradável, tinha como coloração principal o negro, porém suas pontas azuladas indicavam que até tempo atrás ostentava alguma cor não natural.
– Por aqui senhor...
– Freitas – disse logo para não constranger mais uma vez o rapaz que não conseguia decorar meu nome.
Ele meteu as mãos nos bolsos procurando a chave quando parou em frente à porta. Algumas plantas decoravam o corredor iluminado, tão logo destrancou, o rapaz entrou rápido e abriu os braços no centro do cômodo como se dissesse que era muito amplo.
– Não ligue para a bagunça, limpamos o lugar em até 24 horas da entrega das chaves – disse o rapaz abrindo a janela que dava para a rua.
Logo percebi que o antigo inquilino pouco se importava para arrumação. Eram centenas de livros espalhados por todos os cantos, papéis das mais diversas idades compunham o cenário de caos, mas também me alertava para outra coisa.
– Do que morreu o antigo morador? – pergunto de abrupto.
– Ele... Ele sofreu um acidente... – respondeu o jovem surpreso pela pergunta – Como você sabia?
– Acabei de imaginar e você me confirmou – respondi notando que um rubor tomava a face do jovem, que deve ter sido instruído para não comentar sobre o assunto.
O escritório não era tão amplo, mas tinha o espaço necessário que eu precisava. Afinal queria apenas um cômodo para poder escrever em paz, artigo raro na minha casa, há três quarteirões daqui. Comecei a mexer na papelada procurando algo que ainda não sabia o que era enquanto o vendedor falava sobre as qualidades do apartamento. Quando disse que fecharia o contrato ele me cumprimentou efusivamente e passou a tratar dos termos e valores. Debaixo de uma pilha de papéis uma velha Olivetti de cor cinza se escondia na escrivania.
– Amanhã pela tarde o senhor já pode começar a usar o escritório que estará completamente limpo.
– Não precisa. Pode deixar que eu mesmo cuido disso – respondi ao garoto que apenas deu de ombros.
Agora olhando para os acontecimentos passados, não sei dizer por qual motivo eu disse isso. Algo urgia em meu peito pedindo para que o apartamento ficasse como está e eu mesmo o arrumasse. Talvez fosse uma necessidade de construir algo só meu a partir daquele caos, talvez algo que eu ainda não conhecia me chamasse.
O fato é que eu fiz.
Assinei os papéis na imobiliária e no caminho de volta para casa, resolvi passar no escritório. Pela primeira vez comecei a dar atenção para os livros estacionados em todos lugares. Eram biografias, ficções e toda sorte de literatura, além de gramáticas e dicionários. Peguei um calhamaço de papéis ao lado da Olivetti e fui para casa.
Chegando reafirmei o motivo de alugar um espaço para escrever. Não me levem a mal! Amo meus filhos e minha esposa, mas não é possível trabalhar com eles falando pelos cotovelos, e quando me falta paciência tendo a ser rude com os outros, o que é não é muito bonito de minha parte.
Jantamos, assistimos novelas e reportagens, li para minhas crianças antes de dormirem e fui para a cama onde minha mulher já esperava. Conheci Joana quando éramos muito jovens. E desde então nunca nos separamos, seus óculos de leitura pousados sobre o nariz e olhos percorrendo as páginas trazidas de meu novo escritório indicavam que alguém não tinha se aguentado de curiosidade.
– Então? – perguntei.
– Está ótimo. Quando começou a escrever?
– Não é meu, estes papéis estavam no escritório, provavelmente o antigo dono escrevia.
Peguei os papéis em seguida e os li. Era um romance e muito bem escrito por sinal. Haviam também contos, porém nenhum deles assinados. Apenas quando finalizei os textos, consegui dormir e com a noite como confidente sonhei ler novamente aqueles papéis. Não bem a aurora surgiu eu já estava no escritório a procura de mais e haviam muitos.
Eram novelas, contos, discursos e todo produto que a língua consegue imaginar. Cartas de despedida, literatura de cordel, romances inacabados e tudo mais, jogado e sem nome. Conforme arrumava os livros e guardava suas obras em uma caixa, o carteiro jogou uma missiva por debaixo da porta. Precipitei-me a pegá-la e lá encontrei o nome do antigo morador: Edson Ramos. Por uma questão moral nem abri a correspondência, depois a colocaria de volta a caixa de correio com o informe de que este havia falecido, conferi o remetente e era uma editora.
Quando terminei tudo, a noite já se fazia alta e frondosa como nas histórias antigas. Pedi pizza e avisei minha mulher que não jantaria em casa. Quando a comida chegou inundou o escritório com seu cheiro bom. Fiquei ali comendo olhando para aquele monte de caixas de papelão com os escritos de meu colega de profissão. Com o que será que sonhava? Do que gostava? Os textos eram tão diferentes entre si que não fui capaz de captar seu estilo ou tendência. Até os discursos não apresentavam relação entre si.
Então um barulho me despertou. Era um chiado baixo de água fervendo depois um sonoro estalo de peça mecânica vindo da pequena cozinha. Aproximei do cômodo e conferi que a cafeteira estava ligada e fazendo a sua função. Na jarra de vidro o líquido espesso e negro descia fumegante. Não lembrava de ter ligado tal aparelho ou tê-lo visto ligado quando cheguei. Também não era possível que estivesse desde ontem funcionando e tampouco era moderna o suficiente para ser programada. Desliguei-a da tomada por precaução desta ser um tipo de eletrodoméstico rebelde que liga quando bem entende. Girei meus calcanhares e me deparei com uma pessoa parada no batente da porta. Tamanho susto me fez por instinto pegar uma faca pousada sobre a pia e apontá-la na direção no intruso que, com uma xícara de café na mão, não demonstrou surpresa. Ateve-se apenas à sorver um pouco do café olhando para mim.
Vestia um terno curto de cor marrom com reforço nos ombros, por baixo uma camisa branca um pouco puída. Óculos de aros redondos e uma cabeleira já grisalha e esvoaçante terminavam de compor o visual.
– O que você está fazendo aqui? – perguntei mesmo sabendo que o questionamento não trazia nada de pertinente.
– Tomando um café – ele me respondeu olhando fundo nos meus olhos.
Senti um arrepio quando ele me deu esse olhar. Parecia que não se importava muito com minha presença e simplesmente saiu para o cômodo principal. Atravessei a cozinha para ver que ele sentara na cadeira e olhava fixo para a máquina de escrever, aproximou as mãos do teclado, mas pareceu que sequer tocou os dedos nele. Voltou olhar para mim como se perguntasse se eu ficaria olhando.
– Amigo, acho que há algum engano aqui – comecei a falar – eu aluguei esse escritório ontem e segundo me consta é meu. Não sei como o senhor entrou mas chamarei a polícia se você não sair.
Ele voltou a olhar para mim com aqueles olhos fundos e desta vez mostrou perplexidade.
– Eu trabalhava aqui – sussurrou como se fosse segredo – Desculpe. Estou confuso quanto ao meu papel agora.
Não sabia o que dizer. Também tinha dificuldade de entender. Passou pela minha cabeça a carta que chegara pela manhã, a puxei do bolso e joguei sobre a mesa na sua frente.
– Você é Edson Ramos?
– Sim.
– Acho que houve algum engano...
Desatei a explicar que a imobiliária tinha o dado como morto e com o imóvel vago, eu tinha o alugara para mim, mas amanhã teria um conversa para desfazer o inconveniente. Paralisei. O senhor tentava pegar a carta mas sua mão passava reto na maioria das vezes, precisou de muita concentração para por as mãos no envelope. Tinha perdido todas as palavras enquanto o via tentando digitar na sua Olivetti, porém os dedos passavam reto como se nada ali houvesse. Demorou muito para que conseguisse apertar as teclas. Ele era Edson Ramos e realmente estava morto. Senti um pequeno arrepio, o certo seria correr daquele lugar, mas a curiosidade me mantinha em pé, estacado no piso de madeira.
– Você era escritor? – perguntei.
– Sim.
– Já teve algum livro publicado?
– Vários. Até ganhei um Jabuti certa de vez.
Fiquei um tempo boquiaberto. O Prêmio Jabuti era importante no meio literário, mas seu nome não surtia nada em minha memória.
– Qual o livro que foi ganhador? – perguntei.
– Não posso falar.
– Não lembro de ter ouvido falar de você – falei com sinceridade diante da recusa dele dizer com qual livro ele ganhara o prêmio.
– É claro que não ouviu, sou discreto na minha profissão. Sou um ghost-writer.
A palavra bateu na minha cabeça com o significado certo, um escritor pago para produzir em nome de outra pessoa, porém logo em seguida fiquei pensando se ele não falava a respeito de sua condição como morto, pois afinal ele estava e parecia não perceber.
– Você sabe sobre sua... – fiquei alguns segundos escolhendo a palavra certa – condição?
– Sim.
– Então?
– Não comecei a escrever procurando glória ou fama. Isso é difícil no atual mercado editorial que apenas alguns com bastante contato ou simpatia conseguem ter um contrato. Dessa forma eu ganho mais dinheiro. Sou bastante requisitado como escritor e mantenho um bom diálogo de confidencialidade com meus clientes.
Não. Ele parece não perceber que morreu. Mas ao menos tirou minha dúvida quanto ao ghost-writer. Edson parou de tentar acertar a máquina e olhou novamente para mim.
– Estou com uma dificuldade aqui – confessou ele – você pode me ajudar escrevendo o que vou ditar?
Concordei com a cabeça. Segui até a Olivetti e a alimentei com papel. Ele sentou-se no chão em frente a porta e começou a ditar. Escrevi. Não sabia o que no começo e nem porque eu o fazia. Percebi que era a continuação do romance que eu lera na noite anterior. Edson não parava de ditar e eu teclava cada vez mais rápido. Quando o primeiro raio de sol surgiu, o fantasma simplesmente desapareceu. Voltei para casa com sono e acabado. Minha mulher reclamou de eu ter passado a noite fora e eu não podia dar uma explicação sincera do que acontecera. Apenas disse que tinha ficado no escritório, o que era verdade.
Na noite seguinte ele apareceu de novo, sentado no mesmo lugar e ditando seu romance. Fizemos isso por semanas à fio. Aos poucos ele pareceu entender minha necessidade de descanso e fazia pausas a cada hora passada. Nós não conversávamos, era apenas o som de sua voz narrando a história e o bater de teclas da velha Olivetti.
A história se desenvolveu, o enredo era fascinante e aos poucos indicava que teria um final, mas na última página do derradeiro encontro, Edson parou de ditar. Fiquei olhando ora para ele, ora para a Olivetti esperando que falasse algo, mas nada disse.
– Edson?
– Estava aqui pensando, como você acha que deveria terminar?
– Eu n... não sei – gaguejei.
– Dê sua opinião!
– Tudo deve acabar bem. Ele voltando para casa depois de ter conseguido tudo que sonhava. Um final feliz.
– Perfeito.
Edson voltou a ditar colocando a história de forma que tudo acabasse bem. Terminou com a palavra “fim” e passou a se levantar. Virou para a porta e passei a entender que ele iria embora e não mais voltaria.
– Edson? – gritei. Ele se virou, mas percebi que não deveria pedir para ele ficar – o que faço com o livro?
– Publique.
E com essa última palavra ele sumiu. Voltei todos os dias esperando que ele aparecesse mas isso não aconteceu. Ele deixara seu último trabalho para mim. Uma obra que agradaria a crítica e seria um fenômeno de vendas. Completa. Pronta para ser publicada. Um presente sem igual.
Uma semana depois o meu editor já ligava para mim com mil e um elogios sobre o livro. Disse que era sim de grande interesse publicá-lo e no outro mês ele já figurava nas estantes das livrarias vendendo a borbotões. Na capa simples branca um título e um nome. O Escritor Fantasma, de Edson Ramos. O dinheiro ganho foi dado para escolas com programas de alfabetizações para adultos. O livro concorrerá ao Prêmio Jabuti esse ano. A justiça afinal foi feita.