Tentações Sinistras
É aconselhável à pessoa atarefada exercer atividades lúdicas, através das quais possa recompor energias. O Doutor Antunes, cientista eminente, relaxava - quem diria - escrevendo poesias. Envolvia-se assim em uma briga de foice – como diria seu jardineiro – com rimas, métricas, vocábulos, sinônimos e antônimos, metáforas, ficando por vezes perdido na floresta exuberante do idioma. A aventura gramatical, plena de peripécias regadas com ansiedade poética, diluía suas tensões profissionais, garantindo uma noite bem humorada e um sono tranqüilo.
Essa atividade não se encerraria, hoje, conforme planejada.
Após o banho habitual às cinco da tarde, na sala fresca e ventilada e em sua poltrona predileta, com seu notebook ao colo, abrira seu processador de texto e iniciara um poema. Encerrou-o perto das seis horas, colocando a última palavra, corrigindo ortografias, formatando e enviando ordem para a impressora cumprir sua missão.
Satisfeito, preparava-se para ler o impresso, sua obra. Era o coroamento da atividade, momento realmente final, clímax, de seu gozo espiritual. Foi interrompido pela esposa, que noticiava a visita de um estranho alegando urgência. Talvez gente do Instituto.
Embora extremamente contrariado – habitualmente atendia após as sete - a finesse do doutor mandava que ele adiasse o prazer esperado.
Mal se sentou o desconhecido pôs-se a tagarelar:
- Belíssimo poema, Doutor. “Serenilidade” começa a ser feliz pelo titulo. Espiritualismo, metáforas arrebatadoras. Gostei. Mas diria que melancólico.
- Mas como?! – retrucou Antunes, espantado. – Acabei de escrevê-lo, ninguém o viu, e o senhor... – e olhou para as vidraças para verificar se havia a possibilidade do visitante ter espionado pela janela de algum apartamento, com um telescópio ou coisa parecida. Não havia: a casa era cercada de um jardim cheio de árvores que proporcionavam sombra e privacidade. – Como o senhor ouviu o título?
- Para que não restem dúvidas de que estou sendo sincero, com sua permissão, declamarei agora o poema. Como disse, gostei tanto que até decorei.
Antunes, atônito, não reagiu.
- Serenilidade! – começou o estranho.
“Feitas das brumas das noites insones
Minhas vozes silentes discutem
Origens e fins. E porquês.
Antes eram as cores
Sonhadas, perseguidas, conquistadas.
Agora, como pássaros inócuos, os pensamentos voam
Em asas diáfanas e, delicadamente,
Deixam-se planar,
Docemente planar.
Sobre a vastidão e a magnitude,
A placidez alada afaga
O vento, o tempo, a tarde
Que se fazem no meu peito”.
- Mas como!? – repetiu o Doutor, agora um pouco irritado.
- Mas vamos ao que interessa – insistiu o visitante. – Essa poesia reflete um estado de espírito sereno, mas... vencido. E eu sei o que causou isso ao Doutor. Não acho certo o que fizeram com o doutor: aposentadoria compulsória aos setenta anos. Ora, lá no Instituto tem gente com quase noventa. Mas o doutor não quer usar política, não é?
- Mas quem é o senhor?
- A tendência atual é promover profissionais hábeis em “arranjar” verbas. Nem mesmo cientistas eméritos como o senhor são poupados.
O Doutor apoiou-se na bengala – havia um pequeno conflito não resolvido entre ele e seu joelho – e levantou-se.
- Identifique-se ou retire-se – disse com sua voz rouca.
- Sou mais conhecido como Demônio, mas prefiro Lúcifer.
- Senhor Lúcifer, foi um prazer conhecê-lo – respondeu o doutor, dissimulando a perplexidade. - Não sou psiquiatra – e abriu a porta.
- Termino rapidamente e retiro-me. Palavra de Diabo!
- Cinco minutos! – e Antunes Loureiro olhou para seu relógio suíço, suspirando.
- Vou ser claro e conciso: estou aqui para oferecer-lhe a imortalidade. Fernando Antunes Loureiro volta a ser jovem, com todo o conhecimento que tem hoje, e jovem permanecerá eternamente, evoluindo apenas em sabedoria. É isso.
O homenzinho entregou um cartão de visitas ao doutor, esclarecendo:
- Tem muita gente minha nesta terra de Deus. Esse aí lhe arrumará nova identidade, diplomas, etc. e eu mesmo me encarregarei de recolocá-lo no Instituto como um jovem e promissor assistente. Tudo dentro da legalidade, como o doutor gosta. E então dará sequência às suas pesquisas. Partindo do que já sabe, dominando a atual tecnologia e revolução da internet, será um fenômeno, não acha?
- Em troca deveria entregar-lhe minha alma. Não é sempre assim?
- Ora, Doutor. Isso é folclore, literatura, ficção. Primeiro: a alma nunca abandona um imortal. Segundo: quem determina o destino das almas, céu, inferno ou purgatório, é o Gabriel. Eu não tenho esse privilégio.
- E você? O que tem a ganhar?
- Prazer, doutor, puro prazer. E não se preocupe. Só vai ser punido se agir mal. Quanto mais sabedoria mais grave a leviandade. Mas o doutor é um cavalheiro.
- Muito bem, senhor... Lúcifer. Foi claríssimo. Entendi tudo perfeitamente. E não me interessa. Passe bem!
- Não crê em mim? – perguntou apontando para si e então um flash repentino quase cegou o doutor.
Quando reabriu os olhos viu apenas o homenzinho sorrindo. Mas podia jurar que havia vislumbrado uma criatura vermelha, chifruda, ruflando asas negras. O visitante falou agora mais autoritário:
- A partir do momento em que apertar minhas mãos, o senhor se tornará imortal. Nada de simbolismos. Literalmente.
E acrescentou:
- Hoje é terça? Começa já a rejuvenescer, mas tem até meio dia de sábado para se resolver. Até lá pode desistir do nosso negócio. É só beber água pura. Isso feito o senhor voltará a ser o mesmo idi... idílico senhor e esquecerá tudo o que se passou.
Estendeu a mão direita. O Doutor Fernando, atordoado, apertou-a e quedou-se boquiaberto enquanto o estranho diluía-se sob os umbrais.
Demorou a dormir. Refletia: “Se bebo da água imediatamente, ficarei o resto da vida duvidando de minha sanidade. Se não bebo e nada acontece, pelo menos terei certeza dela.” Conseguiu sorrir. “E se...? Idiotice!”
4ª. Feira
Um cochilo e, às quatro horas, sol nascituro, saltou da cama, perplexo. Pôs os óculos para se ver ao espelho. A imagem estava distorcida. “Estarei ficando cego?” Tirou os óculos e então enxergou nitidamente. Ali estava ele com... 50 anos? Não havia mais rugas. Cabelo e bigode estavam pretos. Como explicar à Catarina? Sentado no vaso sanitário, pensou e decidiu.
Silenciosamente, com uma mala básica e trajando seu terno cinza, saiu para o táxi que havia chamado. A capital paulista acordava. No Tietê um expresso partia às seis horas para Águas Lindas. Perfeito! Telefonou para a mulher, tentando imitar a rouquidão que o abandonara. “Não quis acordá-la, Catarina” – e alegou uma viagem urgente e inadiável. Buscava patrocínio para suas pesquisas (era um projeto real, não era?). “Bengala? Não, não esqueci. Estou bem melhor.” “Ah! Nada como o entusiasmo para acabar com doenças, não é?” – ele ouviu. Colara.
Águas Lindas: almoçou no Restaurante Itália e negociou na Imobiliária Central um chalé em rua de poucas residências. No parque das águas localizou uma fonte onde deveria executar o ritual. Após um lanche frugal na lanchonete Aqualindense voltou ao chalé. Nada de cansaço. Incomodara-o apenas beber água de torneira (logo onde!) e reapertar amiúde o cinto frouxo. Surpresa: a barriga o havia abandonado. Saiu: em uma galeria-shopping ainda aberta, comprou jeans, bermuda, tênis e outras peças de vestuário jovens e adequadas à sua nova imagem e ao local. Na Panificadora Estrela do Sul abasteceu-se de pães, leite, queijo, presunto, cereais e sucos.
5ª. Feira
Há quanto tempo!? Viajar sozinho como um cidadão comum, de ônibus, destino repentino, sem aparatos, sem reservas de hospedagem, improvisações e esta noite... Ah! Um sono olímpico, ininterrupto. E que disposição matinal! Ossos macios, articulações azeitadas. E fome. Fome de marmanjão em fase de crescimento. No espelho havia um rapaz de cabeleira reluzente, encorpada, com um topete sobre os olhos vivos.
Na avenida principal caminhou entre turistas, lojas e barracas. Nos passeios, as garotas. Com suas peles jovens, brancas, douradas ou aveludadas em cor de pêssego, jambo, cacau ou jabuticaba, realçavam o encanto da praça. Em meio à exuberância das folhagens e flores que ornamentavam as cascatas artificiais, exibiam-se elas e os ipês vaidosos.
Na Aqualindense e adjacências a juventude era um rebanho inquieto e ruidoso. Fernando procurou entrosar-se. Havia desejo de romance no olhar dos que ouviam; de afirmação nos gestos dos que falavam; de exibição nos que ostentavam iPods, iPhones e carrões tunados; de sedução na garota loura que olhava para ele significativamente. Decidiu recolher-se à noite: a nova geração era muito liberal, estava animado demais e quase convidara a garota para sair.
6ª. Feira
Os turistas afluíam intensamente ao parque. A alegria, mais que do sol, dos gramados, das alamedas, do lago e das paisagens, emanava das pessoas. Havia alegria nos olhos do idoso com o neto subindo-lhe pelas costas; da viúva rica que pechinchava na barraca; da mulher solteira que experimentava um chapéu de sol; do homem na cadeira de rodas que discutia futebol; do casal bem vestido, de cabelos brancos e mãos dadas, passeando.
Cantina: batatas fritas, sal e chope. Segundo tempo: x-bacon & ovos. Mostarda, ketchup e pimenta. E chope. “Prostratite, artrite, minhas ites e meus ismos, minha cara tirana diabetes, meu caro carrasco colesterol, com suas devidas licenças!” – brindou!
A farra, se satisfez as vísceras, não iludiu o coração. Cansado de isolamento, Fernando sentou-se em um banco de mármore e, com os cotovelos sobre os joelhos e a cabeça entre as mãos, começou a pensar.
“Como seria? Eu, jovem, vivendo com conhecimentos e experiências adquiridos ao longo de setenta anos? Seria maravilhoso manipular assim, todo poderoso, novas e antigas gerações? Ou, sem identificação com meus pares, sem o ardor e a inocência da juventude, iria ter, por companheira, a solidão? Como seria presenciar ao longo da vida, a dissolução de minha história pessoal e familiar? Como seria separar-me aos poucos de minha mulher, de minhas filhas e netos, de meus irmãos, parentes. e dos amigos conquistados ao longo de uma existência? Como seria ver diluir-se no tempo essa minha realidade pura, simples, singela e absoluta? Como seria ficar só, absolutamente? Seria suportável viver com esse tesouro inalienável e intransferível enterrado, lacrado em um baú velho, no porão de minha existência?”
Sábado.
Na entrada da estação de águas, cedendo a um impulso repentino, comprou um diário de notícias. Acomodou-se no banco do passeio e pôs-se a ler. A página “Ciências” estampava a foto do Dr. Bernardo Gomes, cientista-chefe do Instituto de Genética, cargo que Fernando ocupara.
A reportagem discorria sobre a intimidade da ciência com o genoma humano. Revelavam-se os segredos do código genético. Milhões de genes responsáveis pelas doenças hereditárias estavam sendo identificados. Métodos para trocar genes defeituosos e improdutivos por genes normais já cumpriam suas funções. A terapia genética, embora tímida, já era uma realidade. A correção genética no embrião humano já era uma possibilidade.
“Estamos aprendendo a falar a língua dos genes e quanto mais conversarmos com eles, mais feliz se tornará a história da humanidade.”
- É isso aí, Dr. Bernardo. Gostei! – Fernando quase gritou.
Levantou-se pensando que, mesmo sem imortalidade, ainda tinha algum tempo e saúde suficiente para concluir seu trabalho. Acreditava nele e, depois de ler a reportagem, acredita ainda mais. Sabe que ajudará a dar um passo gigante na tarefa de decodificação genética. Poderia dar continuidade às pesquisas em um laboratório de iniciativa privada. Não era isso que deveria estar fazendo? Ou estava se iludindo e era, na verdade, um ancião idiota que deveria aceitar o fim do seu tempo? Deixou o jornal dobrado sobre o assento e pôs-se a caminhar, pensativo.
Consultou o relógio: dez e quinze. Apressou o passo e, em menos de cinco minutos, lá estava ela, a fonte escolhida, entre colunas brancas e sob um telhado ornamental.
Um senhor saia lentamente do local. Arqueado, apoiava-se na parede e arrastava os pés. Essas limitações e sua fisionomia denunciavam ao jovem uma kilometragem beirando os noventa, senão mais.
O homem puxou do lenço para enxugar os lábios e apoiou-se na coluna para sentar na banqueta.
Fernando ofereceu-se para ajudá-lo.
- Obrigado, filho.
- Por nada. Mas... O senhor veio até aqui sozinho?
- Sim, sim. – respondeu o homem, enxugando agora o suor.
- Como se chama?
- Meu nome é Gabriel.
- Ga... Gabriel... “Seu” Gabriel, parabéns! O senhor tem determinação. A velhice judia um pouco da gente não é? – disse esquecendo que agora era um jovem.
O homem ergueu-se para o moço, olhos nos olhos:
- Não sou velho, sou idoso – disse.
Fernando, envergonhado, hesitou. O homem deu-lhe um tapinha no braço.
- Estou brincando – consolou sem esconder o riso que lhe sacudiu o corpo. - Velho ou idoso é a mesma coisa. ´Meu corpo é uma casa velha sim, porque trocar a realidade por um eufemismo?
E levantando-se continuou:
- As pessoas criticam meus esforços. Mas penso como um tal de Píndaro, um poeta lá dos quinhentos antes de Cristo. Dizem ter ele escrito: “não se deve buscar a imortalidade mas esgotar as possibilidades que estão ao nosso alcance”. Acho que é isso. Traduzindo, eu diria: ainda que seja pouco o que se pode, goza e vive quem se sacode.
E guinchando asmaticamente, o que passava por uma gargalhada revigorante, o velho virou-se para sair.
- Como dizem vocês jovens: Fui!
- A... Até! – respondeu Fernando, aturdido, contemplando o vulto que se distanciava e se confundia com a multidão.
O jovem voltou-se para o manancial. Apoiou-se na porcelana.
A água purificadora, que lhe devolveria a septuagenariedade, jorrava pura, límpida, cristalina.
***