Libertação: Um conto de amor
A noite continuava chuvosa. O relógio da catedral batia cinco horas da manhã. Um frio corria por todos os cantos das ruas da cidade. A neblina, como um veludoso sonho, pousava sobre o chão molhado. Os pingos da chuva caiam como lágrimas de uma lua que se escondia entre as nuvens. As badaladas que cantavam, para marca cinco horas da manhã na catedral, minguaram. O silencio reinou outra vez na madrugada. Apenas os pingos da chuva essa canção ecoava pela noite.
Como um anjo. Um anjo negro. D*** surgiu em baixo das luzes dos postes. Linda. Olhos verdes. Lábios finos. A chuva deixando seus cabelos escorrer pelo casaco. A maquiagem borrada. Fazia parecer um palhaço de um circo de terror. Porém ainda era bela. Vagava pela noite em busca de um nada. Em busca de reflexão. Amanhecendo outra vez sozinha. O silencio em sua vida parecia não ter inicio, nem mesmo fim. Apenas quando passava na frente de um espelho. Mostrando no seio esquerdo uma tatuagem. “M***** ti amo”. Lembrava-a de quando a noite tocou sua vida. A escuridão reinou em seu coração. Ó como queria livrar-se deste mórbido destino.
Suas noites, após a morte de seu amado, há algumas semanas, baseavam em caminhar sem rumo. Sem destino. Como um fantasma. Sempre amanhecia no tumulo de M*****. Sempre desacordada. Cansada. Fraca. De dia dormia. Esquecia-se em sua cama. E a noite fazia, outra vez, sua jornada sem rumo. Sem destino.
O sol outra vez minguava no horizonte escarlate. Seu leito tinha nuvens negras, como um lençol. Seus raios escureciam. Seu brilho fraquejava. Luminosidade fraca a cada instante. E num instante, num segundo, seu reino luminoso cedeu à noite escura.
Num canto do quarto de D*** um rapaz a admirava dormiu. Seu sorriso doce era triste. Podia ver ainda lágrimas nos seus lábios. Seu sorriso banhado pelo luto. Banhado por lágrimas malditas. Seus olhos sem rumo. Opacos. Vazio. Camiseta negra. Deixava a mostra no peito uma tatuagem. “D*** ti amo”. Nas mãos um vestido. Nas mãos brancas e fracas. Seus olhos fraquejavam a cada movimento se sua amada. Deixando cair uma lágrima. Outra que cairia em seus finos lábios.
Ela na cama abria os olhos. Respirava fundo para saber se a morte tinha tocado-a. porém parecia que esse destino, essa libertação não foi concedida a ela ainda. Seus olhos vagavam pelo quarto, pelo teto. Quando, num pequeno instante, encheram de lágrimas. Lágrimas que rolavam pela sua face pálida, caindo em seus lábios. Sua mão tremia. Ele apenas a olhava. Ela tentava chamar seu nome, mas as palavras não saiam de sua boca. Ele caminhou na sua direção, passos firmes, caminhou sem tirar os olhos da face dela. Chegando perto dela, ajoelhou-se. D*** tocava o rosto de seu anjo. Ela o sentia. Frio. Gélido. Ele apenas a olhava tristemente. Estendeu o braço. Um vestido. Vestido que ela conhecia e nunca usara. Ela pegou, levantou-se da cama e caminhou ao banheiro. Minutos depois saiu. Linda. O vestido no corpo mostrava que sua beleza era divina. Era como um anjo. A brancura do vestido confundia com sua pele. Ele num gesto de cavalheirismo estendeu o braço para ela, que aceitou. Saíram.
A noite estrelada, não prometia chuva. O brilho da lua caia prateadamente sobre a pele dos amantes. A rua silente, apesar de cedo. As casas ainda iluminadas denunciavam pessoas nelas. Pessoas fingindo ser felizes. E ela sorria ao encontrar o olhar de M***** procurando o seu. De mãos dadas, num ritmo só. As poucas pessoas que os viram não notaram a felicidade de ambos, apesar de camufladas em lágrimas, não deixava de ser felicidade.
Caminharam por certo tempo, vigiados pela lua que não se escondia em nuvens como nas ultimas noites. De repente no fim da rua que caminhavam, aqui e ali nasciam lápides. Aqui ou ali, alguma cruz revelava-se na noite. Ou anjos choravam para a escuridão. Portão anunciava que estava fechado cemitério. Mas não se importaram, pois seus passos não diminuíram o ritmo. Chegando ao portão, M***** quebrou o cadeado sem fazer força nenhuma. Já que seu rosto matinha ainda preso no olhar dela.
Entraram no jardim silente. Um corvo no ombro de um anjo cantava para a noite, observando eles entrarem. Como numa estala a noite começou a cantar nos ouvidos dos dois. Violinos e violões silenciosamente cantavam a loucura. Bailando, eles começaram a dançar aquela melodia. Sorrisos e gemidos saiam dos lábios deles. Euforia aos amantes. Nos túmulos algumas rosas ou velas choravam para alguém que descansava ali. Percorreram euforicamente o trajeto até que pararam em baixo de uma arvore. Os olhos dela choraram outra vez para uma lápide que conhecia, ele apenas virou-se para a lua, clamando por clemência. Outra vez se olharam, choraram juntos, de mãos dadas. Ele ajoelhou-se aos pés dela, olhando fixamente, estendeu um colar. Ela chorou. Ele ofegante colocou nos pescoço dela. Sua respiração era profunda. Ela no mesmo ritmo, como num baile. Pareciam ter o mesmo corpo. O colar pesou em seu pescoço. Apertava um pouco, mas não se importava mais. Nada tiraria os dali agora. M***** a admirava gentilmente sem tirar os olhos chorosos. Alua brilhava cada vez mais sobre a cabeça dos dois. A árvore sobre eles parecia rezar para aquelas almas. Então num movimento ele a levantou, próximo de um galho, logo depois deixando a cair.
Ali perto, meio da escuridão, com uma lanterna na mão o vigia do cemitério caminhava. Jurava ter ouvidos vozes. E quando foi ao portão notou que o cadeado havia sido quebrado. Rezava pra encontra ninguém. Nenhum morto andando sozinho. Quando ouviu um sorriso. Não sabia onde. De um sorriso, passou a ouvir alguém cantando, voz de mulher. Aliviou o medo. A voz linda ora cantava ora sorria. Não sabia de onde vinha. Quando se calou. O silencio reinou outra vez, silencio que gostava tanto quando estava de plantão. Caminhou por algum tempo por entre as lápides. Então resolveu recolher-se no seu posto, próximo a capela. Pegando um caminho diferente daquele que fez ao chegar naquele ponto. Nada de diferente. Uma árvore no fim do corredor onde estava. Caminhou, seu coração batia rápido, não sabia o motivo. Suas mãos tremiam. A lanterna vagabunda que o patrão havia lhe dado para fazer seu serviço parecia pesar uma tonelada. Quando, assim de repente, notou algo num galho. Algo branco. Algo que parecia flutuar. Não era muito cristão, mas sabia rezar. Foi o que fez. A luz da lanterna iluminou sua visão. Tremeu. Caiu de joelhos na calçada. Fraco. Nunca aconteceu isso por aqui, nunca nessa cidade. Nunca havia visto isso, a não ser na televisão. Correu para ligar para as autoridades.
Uma corda no pescoço branco e agora roxo. Braços caídos e frios. Olhos inchados. Os pés descalços não tocavam no chão, estavam a alguns centímetros dele. Cabelos lisos e bem penteados. Vestido branco como a neve. O mesmo vestido que o noivo trazia no carro quando sofreu o acidente que veio tirar sua vida. Algumas pessoas a viram caminhar na rua. Ela mesma teria arrombado o cadeado, pois a chave que fizera estava ali próxima. Parecia ter tirado sua vida por conta própria. Já que não tinha sinal de violência. “Estranho, muito estranho” disse o delegado. O mais estranho ainda era o sorriso nos seus lábios. Parecia estar feliz, como se a morte fosse uma libertação. Como se fosse seu destino.