Último sorriso, mais um adeus
E ali, em frente ao enorme espelho de moldura prateada preso à parede, Natália olhava-se. Sentada à beira da cama, usava um vestido preto que lhe caia até a altura dos joelhos, não tinha muitos detalhes, pois a ocasião pedia algo simples e mórbido. Não calçava mais seus sapatos pretos de bico fino e salto alto.
Natália estava ali, parada, até parecia não piscar, enxergava-se com aquelas lágrimas nos olhos que foram escorrendo por sua face de bochechas que já foram mais rosadas do que estavam hoje, lágrimas essas que lhe borraram a maquiagem dos olhos e que lhe molharam de leve o vestido na altura dos seios. Ela se olhava e lembrava que horas antes havia se vestido para aquela festa fúnebre, aquela coisa horrível que são os funerais onde temos que nos despedir para sempre de algum ente querido, familiar ou amigo, na verdade não importa, o acontecimento é sempre cercado por lembranças, tristezas, soluços que não se calam e por diversos abraços que não confortam, vindo de pessoas que nem mesmo conhecemos, pois é nessas ocasiões que somos, muitas vezes, apresentados a familiares que nunca vemos ou que nunca ouvimos falar. Na verdade os enterros são como encontros de família, só que, ao invés de brindarem e sorrirem, as pessoas choram e se despedem com aquele sentimento de adeus sem um até logo. Era isso que Natália pensava nesse momento ali sentada.
Natália nunca gostara de ir a enterros, missas, velórios ou qualquer coisa do tipo, aliás, acho que ninguém gosta. Após alguém ser enterrado quase não se pensa mais em seu aniversário de nascimento, mas sim em seu aniversário de morte. Ao invés de haver uma grande festa, o dia torna-se triste, com aquela cor acinzentada, como se a vida estivesse em preto e branco e o tempo houvesse parado para sustentar a dor. Ela só conseguia pensar nisso desde a tarde do ocorrido.
O espelho que um dia refletira uma Natália alegre e sorridente hoje tinha outro papel. Mostrava um farrapo dela mesma, com aquelas lágrimas e os olhos inchados com olheiras fundas de quem não havia dormido, revelava a ela uma verdade, lhe exibia a solidão. Há algumas horas a jovem havia se despedido para sempre de Maurício, que sofrera um acidente fatal, um caminhão passou no sinal vermelho, o motorista estava embriagado e Maurício não tivera chance nem de ser socorrido, morrera na hora, talvez nem tivesse sentido nada. Mas ela sentira. Natália sentira seu coração ir diminuindo, mas parecendo que faria seu peito explodir a qualquer instante. Eles iam se casar hoje! Maurício estava indo para a igreja para o último ensaio quando acontecera o acidente. Natália vira tudo da porta da igreja, ela vira quando perdera a única coisa que fazia sentido em sua vida, a única coisa pela qual ela acordava todas as manhãs. Ah! Como adorava o sorriso de Maurício! Era uma mistura de moleque travesso e homem sério, haviam se conhecido na faculdade de medicina e desde então viviam um para o outro. Viviam... Até aquela tarde...
E agora, ali estava sentada aquela moça que se chamava Natália, que olhava fixamente para o espelho que refletia um líquido vermelho caindo aos pingos no chão claro e formando uma poça, o mesmo líquido que lhe fluía do pescoço com fúria. Ali estava o reflexo de uma ação já perdida no tempo. A jovem já não estava mais sentada em sua cama, seu corpo tombara de lado com violência, fazendo-a relaxar a mão e soltar a navalha afiada que Maurício costumava usar para se barbear, aqueles dois simples objetos, o espelho e a navalha, formavam uma dupla de cúmplices naquele ato que dera fim à solidão e às lágrimas de Natália. Porém seu olhar mantivera-se fixo na foto presa ao enorme espelho da parede, ela quisera ver Maurício mais uma vez lhe sorrindo de volta.