TAAL

TAAL

Ato único; a queda: “Pois meus olhos não percebem o mal que tu me ofertas. Exorcizo o meu espirito dos horrores reflexos nas janelas de tua alma ferida; insatisfação de uma vida arruinada por más escolhas , e por falta de fé.”

“...afasta de mim este cálice!”

-Desculpe! – Diria ela a um conhecido, no momento em que acabara de chegar naquela sala. Era noite fria, embora mui acolhedora, onde todos eram apenas atenção ao que estava sendo dito pelo mestre sênior e fluido na arte da fala. Acabara, minha algoz, de esbarrar fortuitamente em um dos humanos de pele escura; acertadamente um “ismaelita” de cabelos crespos, que, até então, era apenas ouvidos e olhos para o que estava acontecendo no púlpito docente, e assim permaneceria, ignorando o fato de ter sido tocado por um serafim “-Oh Pai, que digo eu? O que estou querendo?...”. Sinceramente, não tinha notado quem realmente ela era, afinal todas as filhas dos homens me parecem tão iguais: sem brilho, sem encanto, meras hospedeiras da chama parasitária que cega e alquebra tanto a alma quanto o ânimo dos mais incautos; que inebria a honradez de qualquer “santo” que se diga inatingível por tal peçonha: a tórrida volúpia. Alheia à indiferença daquele ser ditoso que fora tocado pela graça e encantamento que somente a mulher pudica tem, - e que se tornaria mais adiante, tanto a graça quanto o encantamento, o elixir para os meus rancores em relação aos homens- ela ondula, agora, entre as cadeiras bem estofadas do recinto, fazendo-se percebida pelos olhos de muitos; embora por poucos, muito poucos, vista como eu a vejo.

“-... Fales comigo!” Balbuciei quando passara diante de minha fronte; como se quisesse ser ouvido; como se pudesse ser ouvido; como se realmente pudesse alterar o destino de sua caminhada solitária, sóbria e digna; como se pudesse obter um olhar, mesmo que frio; como se naquele instante eu fosse humano o bastante para retribuir-lhe o favor que prestara a este arcanjo: o de sentir desejo. “-Tolo!”. Nada fazia com que ela parasse aquela marcha para o canto estremo direito do final da sala, onde a parede de tijolos e as janelas de madeira e vidro compunham a moldura mais bela à espera da própria Afrodite.

Ao aproximar-se de seu mundo-exílio, de seu cosmos-solilóquio; cadeira penúltima da fila de sete outras, todas encostadas à parede que ostentaria as janelas escuras da sala, e que começariam a formação desde o flanco direito do mestre; ela se senta... Debruça-se sobre a prolongação desta mesma cadeira que lhe serve também de mesa, de porto, de fortaleza; deixa, momentaneamente, pertences e frustrações desabarem de seu ser como se fora, tal ambiente, algo mais do que uma sala de conhecimento catedrático, talvez um santuário, talvez... Agora o semblante, outrora vigoroso e decidido, torna-se ríspido, incalculavelmente saturado, indiscutivelmente distante.

-Por que sois assim? O que te faz tão diferente de todas estas outras? Poderíeis me dizer? Poderíeis me sentir? – Desisto de meu posto de observador e levito até a sua fronte. Quedo-me de pé frente a seu lugar de anonimato e deixo com que meu rosto se perfile com o dela.

-Não me ouves mesmo? Não me vês de forma alguma? -Sussurro em sua mente.

-Pega a apostila maior!- Diz uma de suas semelhantes.

- Qual?- Com os lábios milimétricamente próximos aos meus, responde a Vênus. Jamais sentira algo assim. Parecia-me que mil adagas me cortavam o peito. Embora não sentisse seu hálito, a perturbação dos átomos de oxigênio agitados pelo folego de vida que saíra daquela boca assemelhavam-se a um toque; eu precisava acreditar que fosse um toque; chego a implorar que seja um toque...

-Ordeno que fale algo mais! Por tudo de mais sagrado! – Falo, procurando com sofreguidão por uma reposta.

-Ah, está aqui! Nossa, pensei que não fosse chegar nunca!- Mais uma vez a perturbação do espaço subatômico, impulsionando as moléculas suspensas no ar em direção à minha face, me fazem sentir o que desde minha gênese milenar jamais tivera sentido. Uma sensação de impotência frente àquela visão graciosa. “-É mágico, é divino, é místico!”. O que deveria dizer um anjo sobre o que é ser tocado? Não temos o corpo nem a vida para podermos experimentar desta façanha.

-Posso tocar-lhe a face? – Digo hesitante. Olhando para a profundidade daqueles olhos cansados, aborrecidos, fadigados, porém, divinamente belos e enigmáticos. Naquele momento, eram, estes olhos, tudo o que eu tinha.

-Posso tocar-lhe os olhos? –Atrevo-me mais uma vez. Mas agora, há algo de suplica, quase semelhante ao desespero. Meus olhos não conseguem mais se desvencilhar daqueles misteriosos poços de afeto. Toda a matéria transcendente que compunha minha existência começa a entrar em franca ebulição. Há algo de errado, muito errado. “–O que vós sois?”.

Querendo não perceber, enveredo-me neste profundo abismo que é o olhar desta mulher. Erro conscientemente pelos meandros de seu meio-sorriso, dessa meia-vontade, desse todo-mistério. Corrijo minha rota que, em direção ao franco naufrágio, se vê destinada.

-Estou com muita fome. Nossa! Que horas isto termina? Diz com incrédula voz. Como se sua beleza discreta lhe bastasse para arrebatar até mesmo a vontade do próprio tempo.

-Quando estiverdes pronta!” Falo em seu ouvido em um dialeto de minha casta. Inaudível; indecifrável para ela e para o restante de seus iguais.

-Se acaso eu tivesse forças e, talvez, permissão Daquele que me enviou, qual seria a forma que eu tomaria para apresentar-me diante de ti? Que palavras usaria para dizer-lhe o que, em óbvio, tua mente não entenderia? Serieis, por acaso, tão forte assim, para poderdes suportar toda a pureza que emana de minha essência? Serieis capaz de esconder todo o mal que é tua herança, e que eu, como conhecedor de tal estigma, insisto em suplantar com a vontade cega de chacal faminto em busca de fácil presa?. Ponho-me a conjecturar, sem mesmo que saibas de minha presença.

-“Quero sumir, quero ir embora, quero dormir, quero comer, preciso pagar aquela maldita conta; o que aqueles idiotas pensam de mim; por que riem tanto; do que riem tanto?” – Em vagalhões irrepreensíveis, seus pensamentos pululam em sua mente; chuva torrencial como uma tempestade de vida e fúria. Não sabeis, mas ouço a todos os teus devaneios; dom divino que nos fora dado, ou maldição que nos oprime?

Passo, então, a beber aos sorvos todos os teus pensamentos sem a tua licença. Não me incomodo com alguns delírios voluptuosos que lhe escapam ao controle, afinal, és mulher, visão, delírio, temor, tremor... Não me importuno nem mesmo com a indiferença e desdém que aplicas aos falaciosos que, desmedidamente, inundam a sala com besteiras e frivolidades típicas dos parvos. Esquadrinho tuas maduras-medidas como se procurando por uma passagem para tua alma e, assim, poder violar tua decência, tua honra de mulher única de um único amor.”. Pois, como um selo de douradas matizes, percebo o metal frio e impiedoso tirando de mim, ou de qualquer outro, mortal ou não, a possibilidade de revelar-lhe qual seria o verdadeiro intuito da proximidade. Há que se constar que as chamas que ardem em secreto são mais perigosas que as que se ostentam. Inibi-las é tarefa digna de deuses, pois estes, muito controlados por serem mais evoluídos, detêm o poder de findar com seu próprio sofrimento apenas por capricho. E eu, não sendo nenhuma deidade, apenas um servo da glória divina, limito-me ao conveniente; olha-la e não toca-la ,como flagelo à minha vontade, claramente indissipável, de ama-la em suas minúcias.

“-Taal...!!!, O filósofo dos átrios divinos!”“. Diz uma voz gorgolejante de puro escárnio. Não vejo quem a sustenta, tão pouco de onde vem . Sinto como se atingido por um vagalhão de maldade. Como se todo o meu ser fosse arremessado no mais escuro abismo.

“-Esta voz...este horror...Não posso acreditar...”- Coloco-me entre minha Vênus e o mal absoluto que , diante de mim, se ergue do breu resultante da ineficácia das lâmpadas em contato com os diversos obstáculos daquele recinto.

“-Não...Não... Esta vida será poupada...(E)le não mencionou nada acerca de..." - A aparição malevolente parece não me escutar e avança impiedosamente erguendo mãos esqueléticas em direção ao meu maior tesouro. Coloco-me em posição de sentinela. Ergo minha lâmina."- NÃO...VOCÊ NÃO VAI TOCA-LA!!!”

... é tarde...A luz do olhar que outrora me dera a vida, agora, não passa de uma lembrança...

"PAI... Por quê?"

Reverendo lycan
Enviado por Reverendo lycan em 30/10/2010
Reeditado em 04/11/2010
Código do texto: T2587605