Vermelho-sangue

As luzes começam a falhar. As cartas estão jogadas pelo chão, algumas abertas outras não, junto com o lixo e roupas velhas. Meu apartamento está uma bagunça, mas eu não ligo. As garrafas de vodka e whisky estão misturadas com as de cerveja, sake e outras bebidas que não lembro mais o nome, eu mal lembro meu nome.

Trago mais do meu cigarro e aproveito o gosto da nicótica na minha boca. Ainda é um gosto estranho, é ruim, mas gosto de coisas ruins, coisas que me machucam. Com minha mão livre levanto a garrafa e a bebo como se fosse água, a bebida desce pela minha garganta queimando e machucando, mas não ligo, é bom, o álcool é bom, nos faz esquecer coisas, suportar dores. É, álcool é bom.

Termino o cigarro e jogo o talo no cinzeiro. Está nojento, com tantas cinzas e restos de cigarro que eu nem lembro mais qual a aparência... Mas era bonito, ela sempre gostou de coisas bonitas. E novamente, estou me lembrando dela! É uma maldição dolorosa, mas eu gosto de dor, deve ser por isso que me recuso a esquecê-la... ou será que é por que uma parte de mim, escondida por detrás do meu patético e sádico ser, realmente acreditou que alguém poderia me amar? Ah, patético. Ninguém pode me amar, por que o amor é simplesmente um instinto de reprodução, os animais escolhem seu parceiro baseado em atributos que serão herdados pelas futuras gerações e o que eu tenho a oferecer?

Solto uma gargalhada. Olho ao redor e me dou conta de que estou na sala, a televisão está ligada num filme pornô, torço os lábios num sinal de desdém e mudo de canal. Desenhos! Sempre gostei de desenhos. Neles sonhos se realizam. Me sinto... Diferente. Encima da mesinha ao meu lado se encontram várias lâminas: facas, facões, giletes, estilete, pedaços de vidro – de onde veio esse vidro mesmo? Ah! A garrafa de coca-cola que eu quebrei! – Enfim, qualquer coisa que pudesse cortar estava lá. Molho meus lábios com antecipação, começo a sentir excitação e logo estou morrendo de vontade de me cortar! Ah, sentir meu precioso sangue, a minha vida, escorrendo pelos meus braços, me maravilhar com aquela cor magnífica, aquele vermelho tão perfeito, eu quero me satisfazer e com cuidado escolho a lâmina sortuda que me trará tal prazer.

Veja, eu sempre me cortei, mas não dessa forma, com essa vontade louca de me desfazer da realidade. Eu fazia esporadicamente, sempre gostei de sangue, sempre me fascinei com esse liquido maravilhoso e perfeito, acho que por isso sempre amei vampiros, quando criança eu queria ser um... Ah! Estou falando demais, rodeando o assunto, ela dizia que era um dos meus defeitos, indireto demais – ela dizia. Mas ultimamente, desde que ela se foi e o meu mundo pareceu ruir, a vontade é regular. Meus braços, antes bem toneados, estão totalmente marcados, odeio vê-los, mas quero vê-los. Ah! Outra peculiaridade minha, amor por cicatrizes; Minhas pernas também estão marcadas,minha barriga, um pouco das costas e até algumas no pescoço eu tenho, como ainda não morri? É uma bela pergunta.

Sinto minha garganta ficar seca e tomo mais um gole da bebida e continuo a olhar as lâminas... Tão lindas.Queria usar todas! Mas não posso... É uma pena. O telefone começa a tocar, mas eu ignoro. Deve ser alguns dos meus “amigos”, dizendo o quanto estão preocupados e blá blá bla, será que esse povo não se cansa de repetir as mesmas mentiras? Ahhh, odeio mentirosos. Se eu pudesse matava todos! Mas eu prometi que não machucaria ninguém, prometi a minha amada mãe antes que ela fosse assassinada... Eu o vi e somente naquela noite, eu cortei alguém que não era eu... Foi bom. Enquanto eu o cortava e o via gritar de dor, eu sentia inveja... Ele tinha aqueles cortes, deveria ficar feliz, ele podia tê-los, mas eu não, eu tinha que me contentar com as minhas poucas e escondidas cicatrizes. Mamãe nunca gostou e ela também não, como as amava abri mão do meu grande prazer, enfim só quebrei a promessa aquela vez e perdi perdão a minha amada mãe, espero que ela me perdoe e aproveite o céu. Eu sei que nunca vou.

Eles se chamavam de meus “amigos”, mas eles sabiam o tempo todo o que ela fazia e a deixavam, aposto que riam de mim quando eu não estava perto, contando piadas da minha ingenuidade. “Como alguém não nota algo tão obvio?” eles deveriam dizer e rir e rir e rir. Eu não ligo mais, gostava deles, mas eu sempre soube, bem no fundo, que eu só poderia contar comigo mesmo... e com as minhas lâminas.

Sorrio quando a achei. A escolhida. A que me cortaria várias vezes nesse... dia? Que dia é hoje? É dia ou é noite? Não sei, não sei. As janelas estão fechadas e as cortinas também. Afinal quanto tempo desde que eu me tranquei aqui? Dias, será? Meses? Anos? Não, anos não, eu já teria morrido.

O telefone parou e a secretária atendeu:

- “ E-ei... Estamos muito preocupados com você, tem dias que você se trancou no apartamento. Por favor, nos deixe entrar. Converse conosco. Converse com ela! Sim, ela morrendo de preocupação e ela te...” – a voz sumiu.

Eu olho para a lâmina e é tudo o que me interessa. Era uma faca de prata, muito afiada e muito linda, Ela a comprou dizendo que gostava de coisas bonitas... Me pergunto se é por isso que me deixou... Não, todo mundo me deixa. Isso é tão normal que chega a ser tedioso.

Olho para a linda lâmina mais um tempo e lambo meus lábios, já sentia aquele fogo familiar dentro de mim. Tal fogo que só existi na companhia de lâminas e na dela... Mas ela se foi, então só as lâminas.

O telefone volta a tocar. Atrapalhando a minha prazerosa atividade. Suspiro de cansaço. Estou sentindo muito sono e fraqueza. Será da quantidade de sangue que perdi nos dias em que me exilei aqui? Não tenho vontade de comer, apenas me alimento quando o meu estômago começa a me irritar, já não tenho nada a uns dois dias... Só álcool e as minhas preciosas lâminas.

Com muita animação começo a me questionar onde será dessa vez? Onde sairá o sangue tão lindo, que eu me esqueço do mundo ao olhar para ele saltando, perfeito, do meu corpo descendo pela minha mão e sujando o chão. Aquela faca tão linda ficará ainda mais coberta de sangue, de uma cor tão perfeita que só existe no próprio sangue, sempre gostei de vermelho.

- “Por favor...” – a voz na secretária é diferente. Meu coração vazio e oco começa a doer. – “Você não está bem. Deixe-nos te ajudar, deixe-me te ajudar!”

Eu me levanto, ainda com muita tontura e pego o telefone.

Sussurro baixo e com toneladas de ódio, perigo e...amor.

- Não me ligue. Não quero ajudar, muito menos a sua. Estou bem e feliz. –olho para a lâmina que brilha me apressando a usá-la. Até a faca está doida para sentir meu sangue escorrendo por ela.

- Você não está bem. Me deixe entrar, você precisa de mim.

Eu começo a rir. Como se ela tivesse me contado a melhor piada do mundo, e de fato, era.

- Eu preciso de você, sim, mas não vou te deixar entrar. Você está livre de mim e assim vai permanecer, para todo o sempre. Você escolheu ser livre e agora eu que não te quero mais. Vai, vai. Tenho tudo que preciso aqui. GO FUCK HIM longe de mim, capitas?

- Eu te amo... – veio o sussurro sentido.

- Você me ama?

Eu rio.

- Papai também me amava, por isso se matou. Mamães também me amava e foi morte pelo seu cafetão. Você também me ama e foi embora. – meu tom de voz aumenta. – Vá para o céu, por que eu vou para o inferno e não quero te encontrar lá.

Desligo o telefone e sorrio.

Isso é tão engraçado. Ela é tão amável que se sente culpada, tadinha... Eu a amo o suficiente para deixá-la ir. Daqui a algum tempo, não serei um peso para ninguém. Gosto de pessoas boas, elas sugam toda a culpa para si mesmo quando não tem culpa. Claro que se ela ainda estivesse aqui eu não teria tantos cortes ou beberia tanto ou estivesse sem comer ou estivesse prestes a morrer.

Ahh! A morte! Palavra que desperta medo e fascinação. Por que as pessoas têm medo de morrer? Dor é sinônimo de vida, viver é sentir dor, quem está vivo está sofrendo e eles não querem abrir mão desse sofrimento, enquanto eu... Eu e outros como eu imploramos para sermos libertos dessa agonia do viver, dessa dor que não cessa. Eu quero me afastar da dor e eles querem se agarrar nela... Depois dizem que o masoquista sou eu. Humpf... Piadas. Todos somos sádicos, masoquistas, sadomasoquistas a diferença é que alguns admitem enquanto o resto se esconde atrás das máscaras da sociedade. Hipócritas.

O telefone volta a tocar. Eu ignoro. Volto a sentar no chão, onde eu estava antes do telefonema. A lâmina brilhante tocando minha pela. Lambo meus lábios, dessa vez é para valer. Só adoro essa dor, esse cheiro, essa cor, essa textura, esse liquido quente que molha meus pulsos. Ah, percebo, cortei o meu pulso mais fundo do que planejava, o sangue estava saindo muito depressa e em enormes quantidades.

Eu deveria tê-lo detido, mas não consegui me mover. Era tão... Lindo! Aquele vermelho perfeito, tão lindo!

Sem forças, eu deito no chão. Ainda olhando para o meu pulso ensangüentado e que expulsava mais e mais sangue. A visão era linda. Tudo era sangue, tudo. Eu queria me virar, deitar no meu sangue, me deliciar dele, mas estranhamente estou sem forças. Tão difícil ficar de olhos abertos.

Antes de deixar Morpheus me levar eu vejo a faca de prata. Tão linda coberto de vermelho, meu sangue, minha vida para sempre naquela faca que mesmo se limpa continuará a me ter, continuará a ter uma parte de mim.

Eu fecho os olhos e sonho com vermelho. Um lugar muito vermelho com muita gargalhada. Será isso o inferno?

BlackPhoenix
Enviado por BlackPhoenix em 26/07/2010
Reeditado em 27/07/2010
Código do texto: T2401178
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