Os caminhantes
Longe se via duas sombras difusas que se movimentavam devagar, sem rumo certo. A luz da lua fazendo tudo virar prata; se vê que são dois homens, um com as mãos nos bolsos, o outro lhe falta um braço. O que conversam são assuntos de guerras remotas, de corações estourados, cérebros espatifados. Alegram-se quando relembram a tortura que promoveram naquele jovem rapaz. São coisas do cotidiano que não tem tanta importância.
Alguns passos adiante, sentado em uma pedra com a cabeça abaixada, estava um homem. Olhou para eles lentamente com os olhos lacrimejados e vermelhos. Chamou-os. Como se não pudessem seguir suas próprias vontades, foram até ele. Aquele ermo sombrio das trevas e três homens se contemplando. Parecia que qualquer movimento, qualquer suspiro faria uma bomba estourar. Então, uma voz meio rouca, fria e calma, começou a sair daquele ser de olhos vermelhos:
“Sentem-se, vamos... Não tenham medo de mim, não vou lhes fazer mal. Apenas quero me reconciliar com esta porcaria de mundo, com esta vida repugnante... Vida, a minha não foi das melhores, hoje a considero uma desgraça alucinante, algo tão paupérrimo que nem merece existir. Lembro quando realmente tinha uma casa, quando tinha uma família... Damos valor no que perdemos... Mas estava com medo da morte; tinha um câncer terminal que me mataria em dois meses... A loucura me dominou. Fugi. Procurei medicamentos, curas improváveis... e quando estava desesperado e totalmente exausto, aquilo veio a mim. Não disse nenhuma palavra, apenas sorriu sanguinariamente mostrando aqueles enormes caninos e se voltou para meu pescoço. Senti como se meu sangue estivesse secando e depois disso cai no chão e desmaiei, creio eu. A partir daquele dia, a sede me dominou; já não saía ao sol; abominava-o. Vivia nas sombras e na escuridão da noite, correndo atrás de vítimas que nunca mais sairiam da terra. Aquele gosto de sangue em minha boca, aquilo era um prazer imensurável. E com o passar dos tempos, notei que não envelhecia e com isso me considerei um deus. Cerca de oitenta anos mais tarde, senti falta de algo: minha família. Resolvi visitá-la, mas foi um choque para mim. A casa estava bem velha e com rachaduras. Espiei pela janela e vi um velho sentado em uma cadeira. Bati na porta e devagarzinho ela se abriu. O velho perguntou o que eu queria; respondi que procurava uma tal mulher. Ele olhou para mim e disse que ela havia morrido a uns trinta anos. Tremi... perguntei quem ele era. Respondeu. Era meu filho. Minhas pálpebras se fecharam e chorei. Aquilo era cruel. Fui embora. Para esconder minha dor, me refugiei na luxuria e na malandragem. Mesmo assim, há coisas que não tem como se apagar. A dor é terrível e persistente, e quando se tenta lançá-la aos cães, ela nos devora e deixa apenas os o pó. O que pude fazer, sozinho e sofrendo alucinações? O que me restou foi beber uma infusão de alho, veneno para os de minha espécie. Depois disso, sentei-me nesta pedra e estou esperando minha morte. Morte não. Não tenho nem alma, é só podridão de víceras e ossos”
Dito isto, tombou em terra e morreu.
Dedicado à:
Márcio, professor de Educação Física
Margareth, professora de Português