Um Conto de Natal
(Gabriel Resgala)
“Papai Noel é uma farsa! Tem muita criança por aí que deve morrer de raiva dele... Por que ele dá presente mais caro pra criança rica? E por que tem moleque levado que ganha mais presente que o bem-comportado?... Aquele velhinho é a maior prova de como o sistema capitalista se apropria de tudo em seu benefício. Ele pode até ter aquela cara de simpático, mas no fundo é só um vovô chato que faz a gente gastar mais e mais, como se ele é que pagasse a conta! Ele pra mim não passa de uma jogada de marketing fenomenal, conseguiram pegar um santo da Igreja Católica, o tal São Nicolau, e transformaram-no no maior símbolo do Natal, uma data que era pra ser lembrada como o nascimento do mais pobre dos homens, aquele que não tinha nem um lugar descente pra vir ao mundo...”, dizia um amigo meu.
Meu amigo pode ter lá sua razão... Mas aquela menina tinha motivo pra acreditar em Papai Noel. Sempre ganhou os presentes direitinho, ficava feliz da vida. Seus pais não tinham lá muito dinheiro, viviam numa dureza de vida... mas Natal era Natal, oras! E se dependesse deles o “bom velhinho” nunca iria morrer naquela casa. Se esforçavam, juntavam economia, e sempre botavam o presente da filha debaixo da árvore na noite do dia 24 de dezembro. Não queriam que a menina descobrisse a verdade, afinal a vida deles já era tão sofrida, que custava uma fantasiazinha para alegrá-la ao menos uma vez ao ano? E era uma menina tão boazinha, cuidava tão bem dos brinquedos que ganhava, emprestava pros amiguinhos...
Pois um dia ela apareceu com esta:
_ Mãe, o Papai Noel não gosta do papai?
A mãe assustou.
_ Como assim, filha?
_ É que sempre vejo o papai reclamando tanto da nossa casa, que ela tá velha, caindo aos pedaços... por que o Papai Noel não dá uma casa nova pra ele?
Pronto. Lá vinha mais uma daquelas dúvidas de criança que desconcerta até o mais astuto dos adultos. A mãe pensou em desconversar, mas...
_ É... é... é mesmo, né? Por que será que ele não dá uma casa nova pro papai?
_ Você sabe se o papai já pediu?
_ Se ele já pediu?
_ É, se já escreveu a cartinha pro Papai Noel.
_ É mesmo! Vai ver que é por isso, seu pai não deve ter escrito...
_ Já sei, então! Vou escrever uma cartinha pedindo uma casa. Vai ser o meu presente de Natal pro papai! Não conta pra ele não, tá?
A mãe não sabia se ria ou se chorava, diante de uma atitude tão pura... Mas tinha mesmo era vontade de chorar pela situação em que estavam, a casa realmente estava caindo aos pedaços, uma situação crítica... E não tinham condição de mudar de casa, mal conseguiam pagar o aluguel daquela, quanto mais de uma melhor! Mas a filha ia acabar se decepcionando no Natal, como reverter a situação? Que remédio, que triste ia ser...
Foi falar com o marido. Ele também se comoveu com a atitude da filha, mas a comoção lhe gerou revolta. Aprendera que a reação era o choro do homem. E decidiu fazer algo.
_ Quanto tempo falta pro Natal?
_ Seis meses, ué. Estamos em junho.
_ Pois vou fazer hora extra de agora em diante. Tem um programa de financiamento abrindo no banco, acho que com seis meses consigo juntar dinheiro pra dar a entrada num apartamentozinho, e depois continuo trabalhando mais, até acabar de pagar as prestações.
_ Meu bem, você é louco! Vai se matar de trabalhar!
_ Ah, mulher, melhor que viver nessa vida! A menina tem razão, tinha que existir um Papai Noel dos adultos também, nós merecemos mais dignidade! E nossa outra filhinha já tá crescendo, não vai poder ficar dormindo no nosso quarto pra sempre... Deus me livre viver a vida inteira assim, quando que alguma coisa vai mudar?
A mulher parou, pensou...
_ Então eu vou trabalhar mais também.
_ Mas você mal dá conta das suas bijuterias e do serviço de casa!
_ Mas eu faço isso mais como uma distração, pra ganhar uns trocados... Posso fazer de uma forma mais profissional... As vizinhas também gostam de fazer, podíamos nos juntar, comprar material mais barato, dividir a clientela...
_ Bem, se você quiser... e achar que não vai deixar de cuidar das crianças...
_ Deixa de ser bobo, não vou sair de casa, vou ficar de olho nelas! E a menina pode me ajudar, também. Ela lava a louça depois do almoço, ajuda em alguma coisinha, faz o dever de casa e à noite vai brincar...
_ Ok... vamos ver se vai dar certo, então. Só não quero que vocês se sacrifiquem demais!
_ Sim, sim... Mas que isso valha pra todo mundo, então, inclusive pra você! Se um de nós for ficando muito cansado, dá um tempo, pára logo.
_ Fechado. Fica sendo o nosso trato. Hehehe...
Se beijaram, e foram deitar. Mas naquela noite estava difícil dormir, a cabeça de ambos fervilhava de idéias, planos, desejos... Empolgação com um projeto novo, um sonho antigo que agora parecia ter condições de virar realidade! E tudo isso virava insônia... “Nada que um pouco de amor não resolva”, pensou a mulher. E olhou para o marido, um olhar que ele já conhecia. Ele correspondeu, e viveu com ela uma noite tão boa como há muito tempo as preocupações da vida não o deixavam ter...
No outro dia já estava olhando o financiamento. Era mais difícil do que ele pensava, parecia quase impossível conseguir dinheiro pra um apartamento em que coubesse a família. Chegou em casa meio desanimado, mas deu de cara com a empolgação da mulher contando que as vizinhas adoraram a idéia, iam fazer da varanda da casa uma mini-fábrica de bijuterias. E olhou para as filhas, a menor brincando na sala, a maior com aquele sorriso lindo no rosto, escrevendo a cartinha sem deixar que ele visse o que era. “Elas merecem todo o esforço do mundo”, pensou. E decidiu não desistir. Se tivesse que dar errado, não seria por culpa dele.
E assim foram passando os dias, as semanas, os meses. A menina não gostou muito da idéia de ajudar nas tarefas de casa, mas quando a mãe sugeriu que fizesse umas coisinhas que ela gostava (catar feijão, lavar o arroz, dar comida para a irmãzinha), ela se empolgou e foi ajudando aos pouquinhos. E ia se dedicando na escola, não era lá muito boa nos estudos, mas a mãe falou que um presente grande daqueles que ela pediu, o Papai Noel só dava se a criança se esforçasse muito. E o negócio da mãe indo de vento em popa, aproveitava o trabalho pra conversar com as vizinhas, nem viam o tempo passar. Via o marido chegar tarde, o olhar cansado, mas procurava passar um pouco de seu sorriso pra ele. Como admirava aquele homem!
E como ele admirava aquelas mulheres... A esposa e as duas filhas, os maiores presentes que a vida lhe dera. Ás vezes não se achava digno delas, três anjos, e ele um homem tão nervoso, esquentado... Não entendia por que Deus lhe tinha dado aquela família, ele não merecia, tanta coisa errada que tinha feito na vida... Bem, mas agora não era a hora de passar no bar e ficar remoendo o passado... Era hora de pensar no futuro. E elas mereciam um futuro melhor!
E procurava fazer uma prece todo dia enquanto ia pro serviço, pedia a Deus que abençoasse seu trabalho. Afinal não pedia só pra ele... Era pra família! “Se a família é uma coisa sagrada, que a minha tenha ao menos um lugar decente pra morar”, ele pensava. E dava duro, trabalhava muito... Se esgotava, mas pensava na mulher. No trato que fizera com ela. Chegava tarde em casa, mas dava tempo de contar uma historinha pra filha dormir. E ela já nem gostava muito daquelas velhas historinhas, ainda mais com o pai cochilando a cada página... Mas era o momento que tinha pra estar com ele, todo dia. E ela gostava de ver o pai sorrindo quando ela fingia gostar da história, e fingia dormir pra que ele pudesse ir descansar também...
E o descanso dele era pouco, mas era sagrado. Procurava relaxar de vez em quando, pra não se cansar demais, agüentar o trampo do dia seguinte. Ver TV, ler um livrinho, namorar um pouquinho com a esposa. Sentia que ela também estava feliz.
E assim foi indo, até que foi chegando o final do ano. Um dia procurou a mulher...
_ Meu bem, tenho uma coisa pra te contar.
_ O que foi?
_ Olha, é o seguinte...
_ Desembucha logo, homem de Deus!
_ É que... Não vai dar pra comprar a casa.
_ Como assim?
_ Não dá, já olhei em tudo o que é banco, eles querem uma garantia maior, esse salário que eu ganho não convence ninguém... Em financeira também não compensa, cobram os olhos da cara de juros, não vou ter condição de pagar!
A mulher sentou numa cadeira, triste.
_ Ah, meu bem, mas a gente economizou tanto, se esforçou tanto...
_ Pois é, mas o que é que eu vou fazer? Eu não vou dar ponto sem nó, entrar pro SPC é que eu não entro! De que adianta ter uma casa mas não ter nome?...
_ Mas... não vai dar nem pra alugar?
_ Ah, isso tem que ver, o aluguel também não tá muito barato hoje em dia...
_ Mas já é um começo... quem sabe, futuramente, a gente consegue algo melhor?
_ Pode ser... mas não sei realmente se vale a pena, gastar esse dinheiro que juntamos com tanto esforço pra pagar aluguel, é um dinheiro que não tem retorno, a gente só vai gastando... e não vai dar pra fazer hora extra a vida inteira, nem sei se vou conseguir continuar nesse emprego por muito tempo... Não sei se vai compensar, talvez fosse melhor guardar esse dinheiro, fazer um investimento...
_ Ah... – ela tentava se consolar – Tá bom, então...
_ Ah, meu bem... você sabe que essa casa era meu sonho também, era o sonho de todos nós... mas...
Não conseguiu segurar. Os olhos já estavam molhados, um nó na garganta...
A mulher o abraçou:
_ Tudo bem, meu bem. Que seja a vontade de Deus, tá bom? Que seja a vontade de Deus...
E chegou o Natal. Chegou de repente, sem que conseguissem pensar em algo pra dizer à menina. Nem um consolo, nem uma explicação convincente. Na casa do vizinho tocava uma música conhecida: “Eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel...” “Pois é, este ano meu Papai Noel não vem”, pensou o homem. “Com certeza já morreu... ou então felicidade é brinquedo que não tem!”, respondeu a música.
Cearam, rezaram, foram ver os especiais da TV. A menina caindo no sono, já-já ia pra cama, já-já chegaria o outro dia, não sabia o que fazer... Haviam comprado uma casinha de boneca para a filha, pensara em dizer que o Papai Noel se enganara, dera uma casa de brinquedos por engano. Mas tal idéia não o confortava, não queria que fosse assim, iria decepcioná-la tanto...
Foi uma madrugada longa, sofrida. Conversaram, choraram, e a mulher dormiu em seus braços. Mas ele não conseguiu pregar o olho, não se conformava com aquilo tudo, iria ter que contar a verdade. “A vida é assim”, pensou. “Não tenho culpa de ela ser tão dura... Mas é meu dever educar minha filha pra que não se iluda tanto. Quebrar os sonhos, às vezes, faz parte da vida...” No pouco tempo que conseguiu dormir, teve um pesadelo horrível, viu-se atirando contra um velhinho vestido de vermelho. Acordou mais atordoado ainda.
Por fim, o dia. A mesa, o café, o pão com manteiga. Era Natal - mais um dia. A menina acordou, já foi direto procurar a mãe.
_ Minha filha, o papai tem que te contar uma coisa...
Mas ela nem ouviu, estava eufórica:
_ Mamãe, a professora falou outro dia que Papai Noel não existe! É verdade, mamãe?
Silêncio. Por essa não esperavam.
_ Quer dizer, ela disse que ele existe sim, só que não é do jeito que a gente pensa que ele é... Ela falou que ele é um amigo do Papai do Céu, e que só faz o que Ele manda. Ela disse que o Papai do Céu chama ele de São Nicolau, e gosta muito dele, porque ele ajuda as crianças e todo mundo que precisa!...
_ É, filha?
_ É sim! – ela contava, empolgada: e o Papai do Céu gosta muito da gente, não é mamãe?
_ Muito, filha. Desse tamanhão assim!
_ Então se o Papai Noel, quer dizer, o São Nicolau, só faz o que é a vontade do Papai do Céu, ele também só vai fazer o que é bom pra gente, né?
_ É sim...
_ Mas então, mamãe... – e a empolgação virava desalento – Por que ele não trouxe aquilo que eu pedi? – perguntou, com aqueles olhinhos de degelar calota polar.
Breve silêncio. A mãe suspirou, botou a menina no colo:
_ Sabe, filha... O Papai do Céu sabe o que faz... Nem sempre o que a gente pede é o que a gente precisava ganhar naquela hora...
_ Como assim, mamãe?
_ Você nunca ficou feliz de ganhar algo de surpresa?
_ Já...
_ Pois então... se tudo o que a gente ganhasse na vida a gente já soubesse antes o que seria, iria perder a graça, né?...
_ É...
_ Então... quem sabe, o Papai do Céu não quer dar uma surpresa pra gente? Às vezes Ele quer dar outra coisa, que a gente não pediu.
_ Uma surpresa? – e o brilho voltou as olhinhos cor de mel.
_ É... Você já olhou lá na sala, debaixo da árvore?
A menina foi correndo, eufórica. O presente era mesmo uma surpresa: sem que os pais soubessem, vivia namorando aquela casinha na vitrine da loja de brinquedos. Quando abriu o embrulho, soltou um grito tão grande que até acordou a irmãzinha, que pô-se a chorar.
_ É, meu bem – suspirou o marido, quando a mulher voltou com o bebê no colo. Acho que Deus nos ajudou mesmo a dar um bom Natal pra nossa filha...
_ Só pra ela?
Ele se espantou.
_ Olha só, meu bem: esses meses foram de muito esforço, mas foram bons, você não acha?... A gente tava junto, batalhando por um sonho que a gente queria... e que ainda pode se realizar um dia, quem sabe?...
_ É...
_ E agora, olha só: nós podemos abrir uma poupança, homem de Deus! Quem diria, a gente com dinheiro no banco, pra poder usar quando precisar, comprar os livros da menina... É ou não é um presentão de Papai Noel?
_ É verdade... – ele disse, enquanto lembrava também que há meses não ia beber no bar, e que, apesar do cansaço, seu organismo estava se adaptando bem àquela vida dedicada ao trabalho e à família – Sabe, mulher, acho que pra falar a verdade, apesar de tudo, nossa vida tá boa, né?...
_ É sim, meu bem... Outro dia ouvi uma coisa na televisão e fiquei pensando naquilo, sabe... Tinha um cara dando uma palestra, falando que, quando a gente corre atrás dos nossos sonhos, ás vezes o mais importante nem é o resultado... Ás vezes só a corrida pra chegar lá já é uma grande vitória...
_ Eita!... E num é que é? É verdade, às vezes quando a gente faz uma coisa assim, por amor, só o fato de a gente tá fazendo aquilo já é bom demais, né?... Já é um presente!...
Nisso chega a filha correndo, abraçando os dois, feliz pelo presente – e, sobretudo, feliz pela vida que tinha.
(J. de Fora, 07.12.07)
TEXTO PUBLICADO NO LIVRO "COMPREI JUJUBA!" - www.compreijujuba.blogspot.com