Barco-vida

Ele estava surpreendentemente diferente. Logo ele, que sempre almejou a liberdade de seus dias... O motivo estava lá dentro, mas as ondas lá embaixo lhe trouxeram a si novamente. Quanto mais o tempo passava, mais distante ele se tornava; distância não apenas física, mas também sentimental. O que vinha sentindo era confuso e por isso resolveu se afastar. Muitos até então o julgavam como covarde; outros, como um ser egoísta e ausente. Apesar disso, só ele sabia das razões pelas quais voou para tão longe. Só que naquele dia havia algo que o incomodava. A princípio, nem ele entendia o que era e por isso lutava contra aquela sensação esquisita. Tentava focar em seus projetos e ser mais objetivo que emocional. Aí dentro dele aquilo foi crescendo e um choro estranho começou a cair de seu rosto pálido e cansado. Eram as lembranças! Sorriso e choro se misturavam às águas daquele mar triste e solitário. As emoções pingavam de seus olhos, puxando-o inevitavelmente para trás, enquanto aquelas ondas, assim como as nuances da vida, iam e vinham. O dia já estava morrendo, então ele focou no crepúsculo. E esse também lhe falou ao coração. Parecia ouvir algo como “Ainda dá tempo...”. Seu coração, antes empedernido e gelado, parecia derreter a cada batida e então ele entendeu o que tinha que fazer. O fujão resolveu voltar a sua prisão, pois se sentia preso por sua liberdade excessiva. Então, pegou o leme de seu barco-vida e tomou outro rumo. No caminho de volta, apareceram sentimentos novos. Eram especificamente dois: a insegurança e a esperança de perdão. Eram praticamente opostos e por isso, seu peito magro doía, ao passo que, do outro lado do quadro, havia uma família se preparando para o natal. Todos sorriam e pareciam felizes, mas dentro de cada um havia um buraco, o qual tentavam preencher com algo: jogos, comida, piadas... Prazeres paliativos pareciam preencher a falta de algo ou alguém importante. O rapaz do barco levou um dia para chegar à terra e quando chegou, viu que nada naquela cidade havia mudado, apesar de tanto tempo navegando. Foi entrando aos poucos em seu passado e a cada passo, uma lembrança. Ali estava tudo; não precisava de mais nada. Ainda assim, os sentimentos opostos insistiam em duelar. A vitória dependia de uma recepção, que poderia ser Saara ou Alasca. Foi devagarzinho se aproximando daquela antiga casa enfeitada com luzes de natal e um botão dentro dele acionou uma oração sincera que pedia para que Deus abençoasse aqueles a quem ele abandonou. Nessa oração também havia agradecimentos por estar saudável e ter aquela oportunidade de fazer as pazes consigo mesmo e com todos. Ao aparecer na porta, que estava aberta, seus olhos molhados captaram a mesa cheia de guloseimas e sua família reunida também fazendo uma linda oração. Sua esposa pedia em voz alta que Deus o abençoasse, onde quer que ele estivesse. Sua voz embargada entregava a saudade que sentia e ele da porta a tudo aquilo assistia, sem dizer coisa alguma. Logo ela terminou a oração e, assim que todos abriram os olhos, viram que ele estava atrás dele chorando. O choro se tornou coletivo, mas não era salgado como o da saudade; pelo contrário. Era um choro de alegria pelo grande retorno. Todos se abraçaram e, sem qualquer julgamento inicial, cearam juntos. E assim a insegurança foi vencida pelo perdão e ele nunca mais foi embora.

Tom Cafeh
Enviado por Tom Cafeh em 23/12/2016
Reeditado em 02/02/2017
Código do texto: T5861603
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